domingo, 7 de agosto de 2016

Quanto vale um olhar? - Graciela Zabotto


Para que deficientes visuais possam ter um cão-guia, o Instituto Iris lança campanha de financiamento coletivo. Somente com doações será possível repor os animais que precisam se aposentar e atender a fila de espera de quem ainda não tem o auxílio desse fiel companheiro.

Para quem conhece o prazer de ser independente e caminhar sozinho pelas ruas pode levar algum tempo até aceitar que não verá mais o mundo da mesma forma que antes. Foi o que aconteceu com o advogado Genival Santos quando, aos 17 anos, caiu de uma árvore. O acidente causou deslocamento da retina, afetou o nervo óptico e o deixou cego. Ele conta que, na época, viveu alguns momentos de revolta. Além disso, não se adaptou muito bem ao uso da bengala. "Eu não aceitava, em hipótese alguma, usar a bengala. Eu me machucava demais. Eu batia o rosto no orelhão, caia em buraco, usava um sapato apenas três meses porque andava raspando na lateral das calçadas. Era coisa de louco. A minha dificuldade com a bengala era tão grande que cheguei a pensar em usar capacete de motoqueiro de tanto que eu esbarrava em coisas aéreas como, por exemplo, andaimes utilizados para realização de obras em construção civil. A bengala era um instrumento bom, mas não era fundamental", lembrou Genival. Sua vida mudou quando, em novembro de 2006, recebeu a cadela Layla, uma encantadora mestiça de Golden Retriever com Labrador. "Quando eu peguei a Layla, no dia 22 de novembro, eu disse: a partir de hoje voltei a enxergar. Tudo mudou. Eu ando com muita segurança, independência, não piso em buraco, não esbarro em nada, não piso em lixo nem em cocô de cachorro porque ela desvia de tudo. Ela me acompanha em tudo. Quando está em casa a gente tira o equipamento e ela tem vida como um cão normal. Em casa ela não precisa exercer seu trabalho de cão-guia".

A fiel companheira vai trabalhar com ele todos os dias. O percurso entre a casa, no Butantã, e o trabalho, em Itapevi, não é simples. São cerca de 40 quilômetros para ir e 40 para voltar. Durante esse trajeto a dupla utiliza o transporte público que somam, durante toda a viagem, um ônibus e três trens.

O cão-guia também proporciona a inclusão social pelo simples fato de cativar e aproximar as pessoas. Exemplo disso é a própria Layla. "Eu já perdi todos os meus amigos para ela porque eles querem saber só do meu cão-guia. Eu fico feliz porque eles gostam dela", falou Genival.

Mas não foi fácil ter a fiel companheira. "Ter um cão-guia é tão complicado que eu sempre comparo a um processo de adoção. É muito mais fácil adotar uma criança no Brasil do que receber um cão-guia vindo dos Estados Unidos", comparou.

Ele ganhou a Layla por meio do Instituto Iris (Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social). A entidade sem fins lucrativos tem parceria com uma escola de treinamento de cães-guia que fica em Michigan, nos Estados Unidos, e depende de doações para que os deficientes possam buscar os cães. Para isso, eles precisam ficar cerca de um mês na escola para se adaptar ao cão. "Fiz minha inscrição em uma escola americana de treinamento para cães-guia por meio do Instituto Iris e somente após três anos fui selecionado para buscar a Layla". Um cão-guia tem, em média, nove anos de trabalho. Como Layla já vai fazer 11 anos de idade, o advogado, hoje com 37 anos, precisa de um novo animal para poder aposentar sua companheira. "Infelizmente, o deficiente que teve cão-guia e fica sem ele volta a ser cego porque a independência e os benefícios são tão grandes que o usuário volta a ficar cego totalmente. A Layla já tem 10 anos e deveria estar aposentada. Mas é muito difícil fazer a substituição. Meu pedido de reposição já dura dois anos." Para que um novo cão-guia possa orientar os passos de Genival, o Instituto precisa ter recursos para pagar as despesas de viagem até os Estados Unidos.

De acordo com Daniela Ferrari Kovacs, Diretora de Relações Institucionais do IRIS, uma das maiores dificuldades do Instituto é a captação de recursos para garantir a substituição dos animais e também possibilitar que mais pessoas tenham acesso a cães-guia.

Para captar recursos o Instituto Iris criou a campanha de financiamento coletivo 'Cão-guia: quanto vale o seu olhar?'. Precisamos aposentar alguns cães com urgência. O objetivo da campanha é arrecadar dinheiro para fazer a reposição desses cães", explicou. O crowdfunding está aberto no site kickante.com.br e tem até o dia 25 de junho e a meta é arrecadar R$ 140 mil. Para fazer a viagem até a escola nos Estados Unidos, o custo por pessoa fica entre R$ 30 a R$ 40 mil.

Mesmo que o deficiente visual tenha condições financeiras para comprar um cão-guia a venda não é realizada pela entidade. "O Instituto não aceita que o deficiente pague pelo seu próprio cachorro porque seria uma forma muito desigual. Se fosse assim, só quem tem dinheiro teria um cão-guia e o estatuto do Instituto diz que os deficientes devem ser tratados da mesma forma", explicou Genival.

Segundo ele, é uma grande alegria olhar para trás e ver as coisas que conquistou ao lado de Layla. "Ela está muito bem de saúde e vive com alegria, mas tem uma hora que precisa parar. Vou dar a ela uma aposentadoria digna. A Layla vai ficar em casa brincando com o Sam". Sam é o cão-guia da cientista de dados Katia Antunes, esposa de Genival. Ele tem a mesma idade de Layla e também está com um pezinho na aposentadoria. "Tenho grande esperança de que, até o final do ano, eu consiga ir para os Estados Unidos, fazer a substituição do meu cão-guia", finalizou Genival.

Atualmente, a fila de espera do Instituto Iris conta com cerca de 3 mil deficientes visuais que aguardam um cão-guia. Mesmo após o término da campanha 'Cão guia: quanto vale o seu olhar?' a entidade sem fins lucrativos, continuará recebendo doações pois, quanto mais valor o Instituto arrecadar, mais deficientes visuais terão acesso a um cão-guia.

Formando um cão-guia

Conforme o Instituto Iris, a escolha das raças dos cães-guia depende muito da cultura de cada país, e mesmo entre essas raças mais indicadas somente 1 de cada 4 podem servir para desempenhar as tarefas necessárias. No Brasil, são indicadas por exemplo o Labrador, Golden Retriever e Retriever com Labrador, devido a docilidade e não passar medo a outras pessoas, mas isso não significa que apenas estas raças tenham aptidão para serem treinadas. Temperamento, espírito de liderança, tamanho, tipo de pelagem, inteligência e facilidade em aprender, calmo, dócil, obediente e saúde são as principais características indicadas para ser um cão-guia. A triagem inicial acontece nos primeiros 45 dias de vida, quando os treinadores selecionam os filhotes que têm porte, resistência, temperamento, capacidade de concentrar-se por períodos longos de tempo, atenção a toques e sons, boa memória e excelente saúde. Durante os próximos 18 meses, os cães-guia são criados por uma família socializadora que é voluntária e se dispõem a abrigar o animal, ensinar as noções básicas de obediência e, principalmente, expô-lo ao maior número de experiências possíveis. Nesse período, o futuro cão-guia terá os mesmos direitos que um animal profissional já treinado, entre eles estão entrar em shoppings e supermercados, acompanhar o dono ao local de trabalho, usar o transporte público e viajar de aviões. Terminado os 18 meses, o animal volta para a escola para o início do treinamento que vai transformá-lo em um cão-guia profissional. Na escola ele vai aprender a andar em linha reta, ignorar atrativos como odores, outros animais e e pessoas, parar nas esquinas, reconhecer e driblar obstáculos, manter o passo á esquerda e ligeiramente à frente do acompanhante, virar à esquerda e à direita quando ordenado, levar o acompanhante aos botões do elevador e ajudá-lo a subir e a movimentar-se em ônibus e no metrô.


(texto publicado na revista Viver grande oeste São Paulo nº 37 - junho/julho de 2016)

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