Na história das Copas, só três atletas brasileiros jogaram contra a Seleção Brasileira, número que pode ser igualado no Mundial deste ano. Sammir, da Croácia, é um exemplo do novo fenômeno de naturalização de jogadores
Do banco de reservas do estádio Delle Alpi, em Turim, o meia-atacante brasileiro Alexandre Guimarães dividia seus olhares entre o preparador físico da Seleção Costarriquenha e o grande painel preto instalado acima das arquibancadas. No gramado à sua frente, o Brasil vencia a Costa Rica por 1 a 0, gol do atacante Müller, aos 33 minutos do primeiro tempo, no 64º jogo da Seleção Brasileira, então tricampeã em Copas. Era o fim da tarde de 16 de junho de 1990, sétimo dia em que a Itália acordava apenas para assistir aos jogos do Mundial.
Guimarães já havia feito seu aquecimento, amarrado as suas chuteiras e esperava pelo cumprimento da promessa que o então treinador croata Bora Milutinović havia feito a ele depois da estreia do time, quando não entrou em campo: ele jogaria contra a Seleção Brasileira. "Eu estava ansioso e ninguém me chamava. Aí, tive de enviar um recado pelo preparador físico, dizendo: 'Oh, estou aqui e quero entrar. Como vai ser?"', conta Alexandre. Milutinović olhou-o no minuto seguinte. No telão, grandes letras amarelas anunciavam a saída de Juan Cayasso e a entrada de Guimarães. Nem ele, nem o treinador, nem o jogador substituído e nem os 58.007 torcedores que assistiam ao jogo sabiam, mas aquela era a primeira vez que um jogador de futebol brasileiro entrava em campo para jogar contra o Brasil em uma Copa do Mundo.
Daquela tarde em diante, só outros dois jogadores nascidos no Brasil e naturalizados por outros países talvez possam explicar o sentimento de enfrentar a Seleção Brasileira em Mundiais: o zagueiro Alex Santos foi titular no jogo em que o Brasil goleou o Japão, por 4 a 1, na terceira partida da Copa de 2006, na Alemanha. No Mundial seguinte, na África do Sul, em 2010, o também defensor Pepe jogou até os 18 minutos do segundo tempo contra a Seleção Brasileira, no terceiro confronto da primeira fase, que terminou sem gols.
Com 36 anos, Alex ainda joga no Japão: foi a grande contratação do Tochigi Soccer, da segunda divisão do país, para a temporada do ano passado. Pepe, ao contrário, é um dos principais jogadores do futebol mundial: defende o poderoso Real Madrid, da Espanha, e está na lista do técnico Paulo Bento, de Portugal, para disputar o torneio no Brasil.
Outras seleções
Desde 1930, quando foi disputada a primeira Copa do Mundo, no Uruguai, 16 jogadores brasileiros já jogaram por outras Seleções. O paulista Anfilóquio Guarisi Marques, conhecido como Filó, foi o pioneiro da lista: mesmo sendo um dos principais jogadores da liga de São Paulo na década de 1920, ele não foi chamado para integrar a Seleção Brasileira no Mundial de 1930, por causa de uma briga entre as federações paulista e carioca. "Ele arrebentou jogando na Itália e, como a mãe dele era italiana, a naturalização aconteceu tranquilamente. Foi o primeiro jogador brasileiro campeão do mundo, 20 anos antes do título mundial no Brasil, em 1958", conta Nelson Marques Filho, neto de Filó.
Nas pré-listas de 30 atletas encaminhadas à FIFA por todas as federações que disputarão a Copa deste ano, nota-se a presença de sete brasileiros em outras Seleções, sendo que cinco deles foram confirmados no início deste mês de junho e estarão no Brasil para a Copa. Entre os cinco naturalizados, dois devem enfrentar, inclusive, a Seleção Brasileira no primeiro jogo do Mundial, no dia 12 de junho, na Arena Corinthians, zona leste de São Paulo: o meio-campista Sammir, que recentemente foi para o espanhol Getafe, e o atacante Eduardo da Silva, que joga no ucraniano Shakhtar Donetsk, ambos pela Seleção da Croácia. Há a possibilidade, ainda, de o time do Brasil encontrar o atacante alagoano Diego Costa, do Atlético de Madrid, da Espanha, que decidiu defender a Seleção Espanhola em outubro do ano passado, já nas oitavas de final.
Jogar contra o próprio país em uma Copa do Mundo atrapalha até o desempenho dos jogadores na hora da partida, segundo Alexandre Guimarães. "Fiquei mais emotivo nos dias anteriores ao jogo porque a mídia explorou o assunto. Entrevistaram até meus pais em Recife. Foi uma emoção que transpassava o atleta. Estar ali com as pessoas do meu país de nascimento, escutar meu idioma, sentir o ar repleto de brasileiros. O momento mais forte é na hora do Hino Nacional. Pega muito. É difícil até para jogar", diz Guimarães.
Zico, um dos maiores ídolos da história do futebol brasileiro, relatou dificuldades emocionais para trabalhar no jogo contra o Brasil na Copa de 2006, quando treinava o Japão. E Didi, campeão do mundo como jogador, em 1958, e treinador do Peru nas quartas de final da Copa de 1970, no México, revelou, tempos depois, que temeu ser chamado de traidor, caso o seu time eliminasse a Seleção daquele Mundial.
A regra de naturalização de jogadores em vigor, regulada pela FIFA, define que atletas que já defenderam as Seleções de seus países em amistoso oficiais não podem jogar por outros países. Em agosto do ano passado, o técnico da Seleção Argentina, Alejandro Sabella, convocou o atacante argentino Mauro Icardi, da Internazionale, Itália, apenas para garanti-lo ao futuro do futebol do país, já que a Federação Italiana pretendia convidá-lo à naturalização.
Sammir, baiano de Itabuna, que chegou a jogar com a camisa 10 da Seleção Croata nas últimas eliminatórias, é um caso que exemplifica esse fenômeno. Ele começou a carreira em uma escolinha de futebol da cidade, em 1999, quando chamou a atenção de um olheiro do Atlético Mineiro e foi contratado pelo clube de Belo Horizonte, onde jogou nas categorias de base até 2005. Foi para o Atlético Paranaense, de Curitiba, e a sorte se repetiu: um empresário croata o viu jogando e levou-o para o Dínamo Zagreb, maior clube da Croácia. Ele tinha 19 anos.
Hoje, aos 26, Sammir, que está no espanhol Getafe, ainda é um dos ídolos da Croácia, celebrado até pelo maior deles, o ex-atacante Davor Suker, artilheiro da Copa de 1998, na França, com seis gols e que preside a Federação Croata de Futebol. Sammir diz ter tido problemas financeiros e sido vítima de preconceito. Em 2012, criou polêmica ao fazer com que o meio-campista Pranjić recusasse uma convocação para a seleção nacional por causa da sua presença entre os atletas chamados. Sammir falou com a Brasileiros por telefone.
Brasileiros - Como é sua vida na Europa?
Sammir - Cheguei aqui com 19 anos e hoje eu tenho 26, então já são sete anos. Eu me adaptei bem, pensei que seria mais difícil. Saí da Croácia e vim para a Espanha para jogar no Getafe, meu primeiro clube de outro país europeu. Está tudo tranquilo.
Brasileiros - Nos clubes brasileiros pelos quais passou, chegou a jogar no profissional?
Sammir - Não, fiquei nas categorias de base. Fui convocado para todas as etapas das Seleções de base também. Joguei com o Lucas Leiva, hoje volante do Liverpool. Ele foi meu capitão na Seleção Brasileira sub-18, mas faz muito tempo que não falo com ninguém do Brasil. Depois que eu saí do País, perdi totalmente a comunicação.
Brasileiros - Da Seleção Brasileira atual, você conhece alguém?
Sammir - Não. Ninguém.
Brasileiros - Como surgiu o convite para defender a Seleção Croata?
Sammir - Três anos depois de estar jogando na Croácia, me chamaram para conversar e ofereceram um passaporte croata. Disseram que estavam satisfeitos com o meu futebol e queriam que eu jogasse pela Seleção. Conversei com a minha família e aceitei, até porque o futebol da Croácia não tem nenhuma visibilidade no Brasil e eu não teria chance na Seleção Brasileira novamente.
Brasileiros - Você se arrepende da decisão?
Sammir - Não me arrependo. Jogando na Croácia era muito difícil eu ser lembrado para jogar pelo Brasil. A Croácia também me deu tudo o que tenho joe, me abraçou, me deu todas as oportunidades que tive. Nem pensei muito quando fui convidado, sabendo das condições que eu tinha no momento. Estou feliz com a minha decisão.
Brasileiros - Como foi a reação dos torcedores croatas com a sua naturalização?
Sammir - No começo foi difícil, principalmente por eu ser negro. Atrapalhou bastante. Quando a gente jogava em Zagreb, não enfrentava dificuldades, mas quando ia jogar fora da capital, aconteciam várias coisas: pessoas imitando macacos, jogando casca de banana. Nunca me importei com isso. Talvez meu comportamento seja distinto do que sempre é com os jogadores. Eu jogava, mesmo com os insultos, sem ficar triste. Depois de tudo, me abraçaram, porque daí começaram a sair comentários positivos a meu respeito.
Brasileiros - No dia 12 de junho, na Arena Corinthians, o Brasil estreia contra a sua Croácia. Você está preparado emocionalmente?
Sammir - Com certeza vou chorar muito até porque joguei pelas seleções de base, né? Mas preciso ser forte. Tenho de ajudar a Croácia a tentar ganhar. Eu sei que vai ser difícil, o Brasil precisa vencer o jogo de estreia de qualquer jeito. Talvez, na hora, a motivação de não ter sido aproveitado pelo futebol brasileiro me ajude a jogar melhor. Penso mais no momento em que tocar o Hino Nacional. Vou me arrepiar todo.
Brasileiros - Alguns jogadores e ex-jogadores que enfrentaram o Brasil disseram ter problemas técnicos ao jogar contra a Seleção. Você acredita que também pode ter algum problema desse tipo?
Sammir - Eu espero que não. Na verdade, já que não tive a oportunidade de jogar pela Seleção Brasileira, vou fazer tudo o que eu puder para fazer a Croácia vencer, pois foi o país que me colocou ali. Não vou sentir, não. Vou tentar arrebentar com o jogo.
Brasileiros - Se você estivesse no lugar do Diego Costa, que escolheu a Espanha, mas poderia jogar pelo Brasil, o que você escolheria?
Sammir - Ah, aí eu escolheria o Brasil. É meu país e sempre sonhei em jogar pela Seleção Brasileira, como toda criança. Se eu estivesse no lugar dele, escolheria o Brasil, com certeza.
Brasileiros - Já falou com o Eduardo da Silva (jogador brasileiro naturalizado croata, que joga pelo time ucraniano Shakhtar Donetsk) sobre esse jogo contra o Brasil?
Sammir - Ainda não. Somos amigos, estamos sempre em contato e me dou muito bem com ele. Eduardo chegou aqui com 16 anos, casou com uma croata e é venerado na Croácia. Ele é mais croata do que brasileiro. Não sei como vai ser a reação dele. Não falamos sobre esse assunto. Acho que eu e ele estamos evitando falar disso (risos). Mas conversei sobre o jogo com alguns jogadores da Seleção Croata, e eles estão felizes. É o primeiro jogo da Copa, todo mundo estará vendo, e isso será uma propaganda legal da Croácia, que é um país bem pequeno.
Brasileiros - Você chegou a ter algum tipo de dificuldade no início da carreira?
Sammir - Sempre cuidei de mim mesmo. Nunca pedi dinheiro para a minha mãe, meu pai, meus familiares. Tive poucos problemas financeiros. Eu os tive, mas foram poucas vezes. Tudo sempre dependeu de mim. Não tenho do que reclamar. O que eu mais sofri foi de saudade da família, que sempre ficou distante.
Brasileiros - Tem um clube de coração da infância no Brasil?
Sammir - Por incrível que pareça, não.
Brasileiros - Você pensa em voltar para o Brasil?
Sammir - Penso, claro. Quero encerrar a minha carreira no Brasil. Tenho três anos de contrato no Getafe, mas depois quero voltar. A saudade aperta.
(texto publicado na revista Brasileiros nº 83 - junho de 2014)
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