terça-feira, 1 de julho de 2014

Tomara que perca - Eugênio Bucci


A televisão já se tornou um território inabitável para olhos que não sejam fanáticos por futebol. Os intervalos comerciais exultam numa apoteose precoce e descabida, uma verde-amarelopatia histriônica, numa bobajada que sai de baixo. Até mesmo a mulher do treinador do time que representará o Brasil no campeonato mundial, que desgraçadamente se aproxima, virou estrela numa dessas campanhas publicitárias oportunistas (como quase todas). Não dá para assistir.

O ufanismo come solto, não só na TV, mas em todos os tais meios de comunicação. Há lances fora de qualquer limite. A taça de ouro veio fazer uma turnê pelas capitais, atraiu curiosos e despertou uma cobertura de raríssima estridência. Isso mesmo: uma taça, um objeto de metal, algo que não se move, não canta, não faz embaixadinhas, não requebra na passarela, não dá entrevistas nem profere boçalidades, uma taça tão inanimada quanto a imaginação da massa virou celebridade total e percorre o país-continente numa turnê retumbante a que nem os Rolling Stones, nem o papa Francisco, nem a imagem de Nossa Senhora Aparecida, nem ninguém mais teve direito. Um velho praticante de ludopédio, famoso em outras eras, hoje aposentado, foi até lá e segurou a dita-cuja com as duas mãos. Em seguida, declarou diante das câmeras que o gesto lhe proporcionou uma emoção indescritível. Pode? Se aquilo fosse um bezerro de ouro, talvez desse para entender, se fosse um amuleto pagão, vá lá, mas aquela deformidade estrambótica despertando tamanha adoração, realmente, haja paciência!

Em breve, as ruas estarão intransitáveis a qualquer um que não tenha o mesmo vício. Haverá gente buzinando com a bandeira nacional no capô, telões em restaurantes e, pior, nas praças, nas praias. Ouviremos berros em alto-falantes e seremos surpreendidos por moças de biquíni em bamboleio no alto de trios elétricos. Haverá ainda argentinos gritando "Argentina" e rapazes sem camisa abraçados uns aos outros, tomando cerveja na frente da matriz. Tudo turbinado por muita, muita propaganda, propaganda como nunca se viu. Bancos, automóveis, bebidas alcoólicas, sandálias de plástico, tudo verde e amarelo desde criancinha.

Nos dias em que o time da casa jogar, claro, será feriado nacional - todo mundo liberado para o consumo. A Copa do Mundo que impiedosamente se aproxima será a Copa do mercado, da publicidade, do dinheiro, da mercadoria. A Copa do capital, idolatrada pelos trabalhadores. A Pátria nisso aí será mero detalhe, um invólucro de ocasião. Até mesmo o ufanismo foi privatizado. Em 1970, era o governo da ditadura militar quem se ocupava de difundir jingles e hinos (no limite entre o idiótico e o patriótico), para embalar a catarse do povaréu. Agora, a iniciativa privada se antecipa e monta a patriotada por sua conta. O patriotismo é patrocinado. Se alguém bobear, a Fifa manda bordar no lábaro estrelado o logotipo dos patrocinadores e "vamo que vamo". Se já patrocinam até a cueca do Neymar, por que não patrocionar a bandeira nacional?

Claro que a publicidade oficial também terá lugar no festim. Ela vem aí com tudo, para convencer a torcida brasileira de que o desperdício de dinheiro público em obras faraônicas inacabadas foi na verdade um investimento genial a favor dos mais necessitados. Pode contar que haverá muito barulho chapa-branca para esquentar os preparativos da Copa que escalafobeticamente vêm chegando.

No fim, somadas as bugigangas da publicidade privada e o proselitismo do lerolero governamental - tendo como fundo musical aqueles refrões hediondos - miseravelmente vem chegando uma espécie de histeria totalizante e totalitária. Se você não gosta, suma daqui. Se você não gosta, é um pária, não deve ser brasileiro. Se você não gosta, torce contra a glória do Brasil. Cuidado para não ser linchado por essa forma tão tropical de alegria opressiva.

Um samba de Dorival Caymmi, cantado com a voz de sopro amaciante de João Gilberto, sentencia que quem não gosta de samba é "ruim da cabeça ou doente do pé". Doce intolerância, não é mesmo? Pois assim é visto o sujeito que nasceu nesta terra do samba e não venera o futebol: ele é ruim da cabeça ou doente do pé - ao menos na visão desses aí que se deixam comandar pela palavra de ordem publicitária vinda de refrigerantes e cartões de crédito.

O futebol já foi uma arte de pés habilidosos. Já era. Hoje, é a arte dos espertos, dos que compram e vendem jogadores como quem administra cavalos de corrida. Qualquer que seja o resultado, eles é que ganharão a Copa.




(texto publicado na revista Época nº 830 - 28 de abril de 2014)


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