A frase pode parecer óbvia, mas muita gente que não dá a mínima para a cidadania continua sujando os espaços públicos
Duas folhas de sulfite estão grudadas na porta do escritório da chefia. Uma delas alerta os trabalhadores para a necessidade do uso de equipamentos de proteção. A outra lista frases de incentivo que saíram da boca de gente como Albert Einstein e Charles Chaplin. Só a sabedoria dos gênios da ciência e da comédia poderia ajudar os 60 funcionários da Cooperativa de Coleta Seletiva da Capela do Socorro (Coopercaps), na Zona Sul de São Paulo.
Durante oito horas diárias, eles aguentam firme o cheiro desagradável e trabalham duro par encarar e selecionar o lixo que produzimos. O lado bom é que ganham, além do salário de R$ 1.000,00, consciência social: "Sei que o que eu faço aqui vale a pena", conta Ivone Nascimento, 35 anos, enquanto separa garrafas PET, colocando as coloridas de um lado e as transparentes (mais valiosas), de outro. Ela diz não sentir saudade dos tempos de salário-mínimo como balconista. "Meus filhos não têm mais vergonha de mim, entenderam que o que eu faço é importante para o futuro."
Mas nem todo mundo é capaz de compreender o que os filhos da Ivone já sabem sobre a importância da questão do lixo. Basta olhar ao redor para ver como o Brasil ainda não se tocou para a gravidade do problema: a coleta seletiva é rara, as políticas públicas são lentas e, acima de tudo, a sociedade brasileira parece não ter o menor senso de coletividade. O resultado é que as cidades vivem sujas.
"É uma realidade histórica no Brasil. Permanece no subconsciente das pessoas um comportamento colonial, a ideia de que a coisa pública não existe", diz Ivaldo Gehlen, sociológico e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele conta que já viu adolescentes depredando lâmpadas dos postes do próprio bairro como se fosse tudo brincadeira. "Não se dão conta de que é um patrimônio de todos", relata o professor. "O lixo é o lado mais visível dessa falta de consciência pública. E isso não tem nada a ver com classe social. É só ir a bairros mais ricos para constatar que as madames não recolhem o cocô do cachorro."
Crime e castigo
Não importa de que cidade você é ou em que bairro mora: com certeza já viu alguém jogando lixo no chão. Recentemente, o país todo assistiu ao vídeo em que o prefeito do Rio de Janeiro arremessa para longe um resto de fruta. Flagrado, Eduardo Paes pediu desculpa e ordenou que fosse aplicada uma multa contra ele próprio.
Esse corretivo no prefeito só foi possível graças ao Programa Lixo Zero, implantado pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana carioca em agosto de 2013. A iniciativa pune quem descarta resíduos fora de lixeiras ou locais adequados na Cidade Maravilhosa. A fiscalização é feita por agentes de limpeza urbana, que, até o início de abril, já haviam aplicado mais de 46.000 multas. Os valores partem de R$ 98 e dependem do tamanho da infração. Quem joga uma latinha de refrigerante na rua recebe punição de R$ 157. Quem descarta grande quantidade de entulho de forma irregular pode ter de desembolsar até R$ 3.000.
A fórmula de multar quem joga lixo na rua já vem sendo replicada pelo país. Em abril deste ano, um programa semelhante ao do Rio começou a funcionar em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lá, 33 fiscais agora têm o dever de autuar quem joga qualquer coisa fora da lixeira - até mesmo um mínimo papel de bala. A multa mais baixa é de R$ 263, e os valores das penas podem ultrapassar os R$ 4.000.
A ideia de multar os porcalhões confirma uma noção presente em nosso senso comum: a de que o brasileiro às vezes precisa sentir no bolso para adotar os comportamentos certos. Foi assim quando, em 1997, o novo código de trânsito exigiu o uso do cinto de segurança por todos os passageiros de um veículo, tanto na cidade quanto na estrada. Como desrespeitar a regra começou a pensar na conta, aos poucos, as pessoas começaram a adotar a prática.
Hoje, mais de quinze anos depois das nova lei, boa parte da população sabe que deixar de utilizar o cinto não pesa só no bolso: traz risco de vida no trânsito. Por isso, para muitos, sair sem o cinto de segurança é reprovável e impensável. É isso que precisa acontecer com a atitude de jogar lixo na rua.
Tolerância zero
"Nós vivemos de exemplos e temos uma tendência natural à repetição - nem sempre paramos para refletir sobre nossos atos. A punição, a multa, obriga o ser humano a pensar no que fez e, assim, começa a gerar um respeito pela coletividade", explica a psicóloga Tatiana Paranaguá, professora da PUC do Rio de Janeiro.
O valor educativo da multa, porém, é só um dos fatores que influenciam nosso comportamento. O estado de conservação dos espaços também altera nossa relação com eles. Em 1982, o cientista político James Wilson e o criminalista George Kelling defenderam uma tese que ficou conhecida como a Teoria das Janelas Quebradas. O estudo sugere que, se não houver conserto rápido, um edifício com algumas janelas quebradas deixa os vândalos à vontade para quebrar as outras janelas. "Um local abandonado, que passa uma mensagem de destruição e desleixo, pode atrair quem está em sintonia com esses valores", explica Tatiana. "A tendência é repetir aquilo que existe e acontece em volta."
Em 1996, o mesmo Kelling se juntou á antropóloga Catharine Coles para debater a relação entre a Teoria das Janelas Quebradas e as melhores estratégias para conter o crime nas cidades. Para esses estudiosos, a melhor maneira de corrigir o problema é agir enquanto ele ainda é pequeno. Ou seja, consertar uma janela quebrada quanto antes, para evitar outras ações de vandalismo e danos maiores.
Segundo especialistas, a mesma lógica funciona para a questão do lixo. Se cuidarmos da limpeza todos os dias e evitarmos o acúmulo de sujeira, as pessoas vão pensar duas vezes antes de jogar algo no chão. Um ambiente limpo acaba incentivando as pessoas a mantê-lo sempre limpo.
É essa política de tolerância zero à sujeira que faz das estações de metrô um modelo de limpeza em várias metrópoles do país. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma pesquisa contratada pelo metrô carioca aponta que 83% dos 625.000 usuários diários do sistema aprovam a higiene nas plataformas e nos trens da companhia. Para tanto, a empresa não faz vista grossa a nenhuma sujeirinha e até já importou produtos para tirar resíduos persistentes, como o chiclete. "Quando você vai a um lugar limpo e organizado, identifica o respeito pelo ambiente coletivo e fica constrangido de sujar", diz Pedro Mendes da Rocha, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil.
A teoria, comprovada pelos americanos há três décadas, também está por trás de um exemplo bem-sucedido na Bahia. Na comunidade Ribeira, em Salvador, os moradores se sentiam à vontade para colocar lixo na rua de qualquer jeito e a qualquer hora. Resultado: todo mundo sofria com a sujeira. Até que uma moradora teve a ideia de avisar as pessoas quando o caminhão do lixo estava passando. Foi assim que surgiu uma sirene bem alta. Quando ela toca, os vizinhos já sabem que é hora de levar os sacos e sacolas direto para os lixeiros.
Haja saco!
Só em São Paulo, a maior cidade do país, são descartadas 20.000 toneladas de lixo por dia. E, neste ano, a quantidade pode ser ainda maior com a Copa do Mundo e as eleições pela frente. Imagine a mistura de latinha, papel picado e santinhos de candidatos aumentando o bolo de sujeira que emporcalha nossas ruas.
Vai ser difícil evitar que garrafas, restos de comida, cornetas e uma infinidade de outros objetos tomem as ruas em dias de jogos da Copa. Mas, no caso das eleições, a sujeira já entrou para a lista de propaganda eleitoral irregular, e o candidato que distribuir santinhos pelas calçadas pode ser autuado. No pleito de 2012, as punições chegaram a R$ 15.000 em São Paulo. Mais do que a Justiça Eleitoral, os eleitores é que agora devem ficar de olho nos candidatos. Nas últimas eleições, as pessoas criaram páginas na internet para mostrar as propagandas que geravam lixo nas cidades, queimando o filme de muitos políticos.
Bola de neve
É bom lembrar que o problema do lixo não é só estético. Além de deixarem a cidade feia, os restos espalhados pelas ruas trazem mau cheiro e favorecem a proliferação de ratos e insetos, que nos transmitem doenças graves. A sujeira também pode entupir bueiros e causar as enchentes que atormentam milhões de pessoas todo verão.
"A forma equivocada de tratar o lixo gera 'deseconomia' e desinteligência. Todos perdem", afirma o arquiteto Pedro Mendes da Rocha. Segundo ele, faltam políticas públicas para solucionar o problema. O Plano Nacional de Resíduos Sólidos, por exemplo, está patinando desde 2010. Muitas de suas medidas ainda não foram postas em prática, e, assim, o lixo doméstico e os resíduos dos setores da saúde e de construção civil continuam sem destino certo.
Enquanto isso, cidades como São Paulo lançam os próprios planos. Aqui, a aposta é no aumento da capacidade de reciclagem: além da inauguração de mais usinas, o município vem incentivando o tratamento de resíduos orgânicos em casa mesmo, com composteiras que transformam o lixo em adubo - uma experiência bastante difundida em países como Austrália e Bélgica.
Para lidar com um desafio desse tamanho, qualquer tentativa é bem-vinda. Mas nenhuma delas irá a lugar algum sem a conscientização da população. Vale saber que a reciclagem é uma aliada fundamental para reduzir o volume que é descartado diariamente nos aterros. E todos têm, acima de tudo, de praticar a máxima de que lugar de lixo é no lixo.
Faça a coisa certa
Contra a corrente - O lugar está imundo? Todo mundo está emporcalhando a rua? Não repita o erro dos outros: dê o bom exemplo e jogue seu lixo no lugar certo.
Lixo no chão, não! - Falta de lixeira não é desculpa para jogar lixo na rua. Tenha sempre em mãos uma lixeira particular: um simples saquinho na mochila, na bolsa ou no carro. E, é claro, aquele papel de bala pode muito bem ficar no bolso até você encontrar uma lixeira!
Reciclando! - Reúna os moradores de seu prédio ou de sua rua para falar sobre a separação dos resíduos domésticos. E procure fazer uma parceria com uma cooperativa que recolha lixo reciclável no bairro.
Educação desde cedo - Ensine seu filho ou neto a jamais jogar lixo no chão. É assim que começa o respeito pelos espaços públicos.
(texto publicado na revista da Droga Raia nº 38 - jun/jul 2014)
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