Foi, provavelmente, a primeira vez que você me leu. Algum amigo mandou para sua caixa postal eletrônica um texto que começava assim:
"Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando e possa estar deixando discretamente sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa praga terrível da comunicação moderna, o futuro do gerúndio".
Naquele tempo, nem todo mundo ainda tinha se dado conta de que o português do Brasil estava sendo contaminado por um tempo verbal esdrúxulo, contrabandeado por más traduções de livros de marketing. A situação era grave. Se nada fosse feito, em breve aquilo seria considerado correto e incorporado à gramática brasuca.
Tratava-se de uma campanha educativa: "Mais do que estar repreendendo ou estar caçoando, o objetivo deste movimento é estar fazendo com que esteja caindo a ficha nas pessoas que costumam estar falando desse jeito sem estar percebendo".
Em tom de manifesto, eu continuava: "Nós temos de estar nos unindo para estar mostrando a nossos interlocutores que, sim!, pode estar existindo uma maneira de estar aprendendo a estar parando de estar falando desse jeito".
No fim do mês passado, esse texto fez cinco anos - o que significa que estamos já há meia década em guerra contra o terrível gerundismo. Será que temos algo a comemorar?
Acredito que sim. Pelo que sei, muitos bancos e operadores de telemarketing - os próprios laboratórios de onde essa doença escapou para as ruas - empenharam-se em campanhas para erradicar o gerundismo de seu ambiente (em alguns casos, usando até aquele texto como apostila).
Hoje, o gerundismo deixou de ser uma conspiração de grandes empresas contra nossos ouvidos e tornou-se um vício de caráter privado, como o cigarro, o álcool ou o bingo. Ainda não existem clínicas de reabilitação para gerundistas, mas é só uma questão de tempo. Só quem já se viu dominado sabe quanto é difícil largar o gerundismo. Às vezes, o "eu vou estar transferindo a sua ligação", é mais forte do que você.
Felizmente, o pior não aconteceu. Se nada tivesse sido feito há cinco anos, a que ponto teríamos chegado? Não custa nada imaginar.
A esta altura, o gerundismo já teria escapulido das relações de compra e venda e invadido outros territórios, como o dos ditados. De "ter é poder" para "estar tendo é estar podendo" é um pulo. O último que vai estar chegando é a mulher do padre. É estar pegando ou estar largando!
As crianças, graças aos céus, continuam imunes. Ainda não se canta "Ciranda, cirandinha, vamos todos estar cirandando". Pais e padrinhos não perguntam "O que você vai estar sendo quando vá estar crescendo?". Garotos brigões nõa ameaçam "Eu vou tá te pegando na saída!".
A poesia permanece a salvo do gerundismo. Dificilmente nosso próximo Vinícius escreverá "Eu sei que vou estar te amando/Por toda a minha vida vou estar te amando". Outra: os títulos dos livros continuam intactos. Ainda não soltaram nenhuma edição de "A insustentável leveza do estar sendo".
Enquanto o gerundismo permanecer fora dos estádios de futebol - e o "Vamuláááá! não se transformar em "Vamotaindolááááá!" - , saberemos que a situação está sob controle, e o gerundismo um dia passará, como um "a nível de" qualquer.
De todo modo, vencemos algumas batalhas, mas a guerra ainda não está ganha. O lema do movimento continua o mesmo: não vamos estar nos dispersando!
(texto publicado na revista Época nº 409 - 20 de março de 2014)
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