A insônia está virando problema de saúde pública nas grandes cidades brasileiras - e atormenta principalmente as mulheres. Estresse, depressão e distúrbios hormonais são os principais vilões das noites em claro
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite.
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
O poema Insônia, escrito em 1929 por Fernando Pessoa, descreve a típica agonia das noites em claro, com todo aquele amontoado de horas que parecem não passar - e durante as quais não se consegue fazer mais nada, a não ser... enfrentar o horror de não conseguir dormir. Uma pesquisa que acaba de sair do forno, feita pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concluiu que nas grandes metrópoles brasileiras há um número cada vez maior de pessoas capazes de ler esses versos e pensar: "Eu sei exatamente o que é isso". O estudo avaliou o sono de 1 042 voluntários da cidade de São Paulo, com idades entre 20 e 80 anos, de ambos os sexos, e comparou os resultados em três momentos: 1987, 1995 e 2007. Com a ajuda de avaliações físicas, exames clínicos e de polissonografia e aplicação de questionários detalhados, os especialistas concluíram: a insônia está se tornando um problema de saúde pública nas grandes cidades. E pior: há uma forte tendência de aumento dos diferentes distúrbios de sono, especialmente nas duas últimas décadas.
A pesquisa avaliou principalmente três características de insônia clássica: a dificuldade de pegar no sono, a incapacidade de mantê-lo durante toda a noite e a impossibilidade de voltar a dormir depois de acordar. O resultado: houve crescimento agudo em todos esses sintomas nos dois sexos, o que manteve as mulheres entre as principais personagens das noites em claro. Segundo Sergio Tufik, médico e coordenador do Instituto do Sono da Unifesp, um dos responsáveis pelo estudo, a deterioração da qualidade do sono nas três últimas décadas está associada ao estresse de quem mora nas grandes cidades e convive com problemas crônicos - e cada mais vez comuns -, como altos índices de violência urbana, trânsito caótico e excesso de barulho e de luminosidade.
Quem sofre de insônia sabe o que acontece quando não se consegue dormir entre sete e oito horas sem interrupções. Dores musculares, fadiga, falta de concentração, diminuição na agilidade mental, maior ansiedade e irritabilidade, alterações cardiovasculares e hormonais. "É impossível não dormir e ter qualidade de vida. A pessoa fica zureta. O trabalho fica ruim, as relações pessoais ficam comprometidas. Quem tem sono restrito não consegue ter um dia agradável", define Tufik.
Mas, se a razão de dormir mal está relacionada ao estresse da vida nas grandes cidades, o que fazer? Se não houver perspectiva de criar carneiros no campo, a providência óbvia é procurar ajuda médica. Para achar o tratamento certo, é preciso saber a origem do problema. E na maioria das vezes, aprender a conviver com suas causas.
Montanha-russa hormonal
Para efeitos médicos, fala-se em insônia quando uma pessoa não consegue dormir por três ou mais noites da mesma semana. As mulheres são maioria entre os que recebem esse diagnóstico - e por razões hormonais. "Nos homens, a testosterona é igualzinha todos os dias. Mas as mulheres vivem uma montanha-russa de progesterona, estradiol, estrona, o que não ocorre com os homens... Esses hormônios têm atividades no cérebro delas com variações de sensibilidade, tornando-as mais ou menos vulneráveis ao estresse. Em alguns períodos, elas podem pensar que não conseguem dormir por causa da responsabilidade de um trabalho ou algo parecido. Mas é bem possível que essa dificuldade coincida com um período em que estejam mais sensíveis", explica Tufik.
Há ainda várias outras causas para as noites aterrorizantes, que lembram contos de Edgard Allan Poe. A insônia, em si, é apenas parte de um universo maior, o dos distúrbios do sono. Há problemas que não fazem, necessariamente, com que a pessoa desperte ou tenha consciência de que acordou no meio da noite. Mas todos os distúrbios comprometem a qualidade do sono. Entre eles estão a apneia (parada e interrupção na respiração), o ronco, a síndrome das pernas inquietas, o bruxismo (ranger ou apertar dos dentes), a narcolepsia (sonolência diurna excessiva) e o sonambulismo. Para todos esses casos há tratamentos com grandes chances de cura. Alguns, como a apneia, desaparecem com pequenas intervenções cirúrgicas. Se o problema for estresse mesmo - e na maioria das vezes é -, fazer terapia pode ajudar, porque o insone precisa aprender a ter autocontrole diante de situações altamente estressantes. É o típico caso em que o melhor remédio é dar um jeito de lidar com o que causou a doença.
Tarja preta e riponguices
Entre as pessoas que sofrem com insônia e procuram ajuda médica, só no Hospital das Clínicas, em São Paulo, 70% são mulheres, das quais 20% não dormem por causa de depressão e 10% devido à ansiedade. Nos dois casos, o tratamento é medicamentoso, recurso amparado em tecnologias que evoluem rapidamente. Até há poucos anos, a falta de sono crônica era tratada com barbitúricos, atualmente utilizados como anestésicos. Depois, vieram os hipnóticos benzodiazepínicos, ainda usados em alguns pacientes, mas que podem causar problemas como dependência e tolerância. Há cerca de dez anos, surgiram os hipnóticos não benzodiazepínicos, como zolpiden, zopiclone. "Esses remédios são capazes de oferecer uma noite normal de sono, sem a incidência de tolerância e dependência", afirma Tufik.
Fora do mundo da tarja preta, existem os métodos de relaxamento. Em meio a esse universo, pode parecer uma solução riponga, mas sucessivos estudos mostram que todos são, de fato, eficazes. Na tentativa de relaxar o cérebro a ponto de fazê-lo entrar em estado de sonolência, vale tudo: massagens, músicas relaxantes, ioga, técnicas de respiração, pensamento focado em paisagens tranquilas... Qualquer coisa capaz de ocupar o lugar das preocupações pode ser um ótimo indutor do sono. Inclusive contar os famosos carneirinhos, se assim lhe aprouver.
No rol dos heróis das noites bem-dormidas também está lá, a disciplina. Algumas causas da insônia são surpreendentemente comezinhas, apenas maus hábitos. Há, por exemplo, o consumo de estimulantes perto da hora de ir para a cama, como café, refrigerante, chá preto, álcool, cigarro. Ou a ausência de horários fixos para dormir. Ou as atividades que estimulam o cérebro a continuar em ação, como assistir televisão e usar computador. E há até a má ideia de tentar pegar no sono com a luz ligada - porque a exposição à luz artificial confunde a produção de melatonina, hormônio que induz o sono e é secretado no escuro. Enfim, o ato de simplesmente deitar e dormir é quase uma utopia para quem vive rodeado por muitos estímulos. "Vale a pena fazer um esforço para submeter o organismo a um ritmo, a uma rotina", assegura Rubens Reimão, coordenador do Grupo do Sono da Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas.
Se esse esforço civilizatório não funcionar, sobra uma dica de ouro: procurar ajuda o mais rápido possível, em vez de assumir a dificuldade de pregar os olhos como uma espécie de condição, um dado do temperamento. Quem não dorme à noite sente durante o dia cansaço, ansiedade, muita irritação. Tudo isso compromete o sono na noite seguinte. E assim por diante. "É um ciclo que precisa ser rapidamente combatido", explica Reimão.
(texto publicado na revista Lola nº 7 - ano 1 - abril de 2011)
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