terça-feira, 14 de junho de 2016

A crise na carne - Walcyr Carrasco



Convidei um amigo desempregado para fazer refeições na minha casa. Solidariedade é o que nos resta

Sou um rato de livraria. Sempre vou a livrarias, grandes, pequenas, todas! Passeio pelos títulos. Compro mais do que consigo ler. As prateleiras das livrarias continuam cheias, mas as editoras andam lançando menos títulos. Boa parte é de livros lançados há tempos. As editoras estão desovando estoques antigos. É uma retração visível, que afeta o cotidiano de um devorador de livros como eu. Mais ainda: fechou a editora Cosac Naify, conhecida pela qualidade de seus lançamentos. Outras, sabe-se, não estão em boa situação. A crise econômica está corroendo nosso cotidiano. Até mesmo meus hábitos pessoais.

Jantar fora era um desses hábitos. Mas, com duas novelas seguidas, Verdades secretas e Eta mundo bom!, fiquei um tempo sem ver amigos, sem sair. Recentemente, voltei a um japonês que frequentava muito com um velho amigo. Pedimos os mesmos pratos das outras vezes, porque adoramos carpaccio de salmão, sashimi. A conta veio quase o dobro de seis, sete meses atrás. Foi um susto! Outra noite, resolvi jantar em três num lugar mais elegante, aonde também já fui várias vezes. Tinha uma ideia do valor da conta. Saiu o dobro. Francamente, ultrapassou os R$ 1.000 e nem bebemos vinho! Quase desmaiei quando entreguei meu cartão de crédito. Eu, incauto, havia convidado os dois amigos! Enquanto tentava recuperar a respiração, eles se levantaram rapidamente para pedir o carro. Conta alta faz os melhores amigos fugir da mesa na hora de pagar! Pior. Havia um restaurante em São Paulo do qual eu gostava especialmente, o Momotaro. Na parte de baixo, japonês comum. Na de cima, o chef Adriano servia somente dez pessoas, com um menu-degustação criado na hora. Uma maravilha! Tentei marcar. Ninguém atendeu ao telefone. Descobri: fechado para reforma. Reforma?

A Escola de Danças Ruth Rachou existia havia 43 anos. Ruth Rachou em sua época foi uma das mais importantes bailarinas de São Paulo e uma das introdutoras da dança moderna no país. Seu filho Raul e eu estudamos juntos. Nunca dancei. Mas tenho uma ligação emocional com a dança, devido a essa amizade. Há pouco mais de um ano, a escola mudou de seu antigo endereço para a Rua Augusta, em São Paulo. Oferecia aulas de pilates também. Danças de salão. A crise da escola de dança não ocorreu só por causa do momento econômico. Houve uma época em que as pessoas davam prioridade a se expressar com o corpo. Hoje, querem malhar e cresceram as academias. A escola transformou-se em “studio”. No final do ano passado, fechou. Uma antiga aluna assumiu, deu novo nome e está tentando reerguer. Para piorar, a escola ficou com uma dívida em impostos. Pessoas do mundo da dança, como a crítica Helena Katz, tentam levantar dinheiro por meio de crowdfunding. Solidários, os amigos estão depositando para atingir o valor do pagamento. Mas uma escola de 43 anos fechada! Dói de falar.

Nos supermercados, os preços sobem sem parar. Mas as grandes grifes, antes do Natal de 2015, ofereceram promoção a 40%! Imaginem, a liquidação costuma ser depois do Natal. Se foi antes, é porque as compras caíram. Eu me pergunto quantas vão resistir. Com o preço do dólar, está difícil importar roupas a preço competitivo. Eu me pergunto: se até as grifes poderosas estão correndo atrás de compradores, e os mais modestos?

Confesso. Há mais de um ano tenho um andar comercial inteiro, novo, para alugar. Economizei muito para entrar na construção. Era parte do meu futuro projeto de aposentadoria. Há tenho 64! Queria uns aluguéis, para reforçar o orçamento. Do prédio inteiro, até agora alugaram só um conjunto. Em vez de ganhar, pago condomínio e impostos! Meu projeto de aposentadoria? Foi para o despenhadeiro, eis tudo.

De cortar o coração, foi a observação de um amigo que mora na Espanha, ao andar em São Paulo.

- Nunca vi tanta gente pedindo esmola.

Muitos perderam o emprego. Foram obrigados a deixar suas casas. Morar na rua. Não está longe de mim. Tenho pelo menos dois amigos, profissionais, desempregados. Um come na casa da tia e toma ônibus de graça porque é maior de 60 anos. O outro pensa em ir para o exterior, de tão mal. Por enquanto, convidei-o para fazer as refeições em casa. Solidariedade é o que nos resta, não é?

Os pobres estão mais pobres, a classe média já não consegue manter o nível de vida. O medo nos contamina. A crise abraçou nossas vidas. Mais e mais, a gente sente na carne.


(texto publicado na revista Época edição 920 – fevereiro de 2016)

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