quarta-feira, 22 de junho de 2016

Cauby Peixoto (1931-2016). o maior ator dramático da música brasileira - Diogo Vilela


Cauby Peixoto cantava com a mesma temperatura emocional das divas do teatro, como Fernanda Montenegro ou Nathalia Timberg

O teatro traz uma estranha eternidade aos atores e suas personagens. Por estar na profissão desde muito jovem, pude perceber isso ao ver Marília Pêra em Apareceu a Margarida e, mais tarde, Bibi Ferreira em Gota d’água. Quando Bibi cantava as músicas de Chico Buarque, eu agradecia a Deus por testemunhar aquele momento de harmonia incandescente. Era eletrizante ver aquela mulher fazendo Medeia de um jeito tão brasileiro e tão universal! Eu ficava mudo. Cresci em minha profissão, muito inspirado em Marília, Fernanda MontenegroNathalia Timberg e Henriette Morineau. Eu me identificava com aquelas deusas do teatro. Entendi que personagens são como espíritos, não têm sexo e usam  a verve do ator para subir aos palcos. Nunca esqueci o brilho de Glauce Rocha e de Cleide Yáconis. Cleide era única. Dominava as palavras com um requinte e uma impostação que dava gabarito ao nosso teatro. Quando acabava o espetáculo, saía modesta, cigarro na boca, para jantar comigo dirigindo seu Fusca pela Avenida Paulista. Ela substituiu Madame Morineau quando esta, de uma maneira delicada, teve um infarto do miocárdio ao fazer uma cena comigo. Ela não queria parar o espetáculo. Segurando com força a minha mão, exigia que eu a deixasse terminar em paz o segundo ato para que aí sim fosse socorrida.

Muitos anos mais tarde, num momento de reflexão e solidão, eu assisti a uma entrevista de Cauby Peixoto. Ele, com seu vozeirão, falava de si mesmo de forma lacônica e macia, mas com uma dramaticidade velada. Quando a câmera fechou em seu rosto, pensei: aí está um personagem vivo de nossa história, com uma voz que transmite a mesma temperatura emocional das divas do teatro. Eu me vi no palco como aquele personagem dificílimo, que não falava muito, mas que, ao cantar, transmitia a mesma dramaticidade dos grandes atores do meu passado. Fiquei nervoso. Estaria sendo muito ousado? Nos dias seguintes, comprei todos os hits de Cauby. Um a um! Devorava as músicas e decorava as suas letras cantando em cima de sua voz durante meses... Meu professor Victor Prochet foi o primeiro a me garantir que eu poderia fazer a personagem Cauby. Disse que eu precisaria apenas trabalhar a técnica. Entramos então no universo de vocalises dificílimos. Corria perigo ao construir uma personagem que ainda vivia e todos amavam. Cauby tinha uma voz única, que jamais poderia ser igualada ou imitada, mas sim recriada. Foram três anos de aprendizado, cantando em cima de sua voz nos CDs, tentando alcançar seus glissandos e seus agudos, tentando perder o medo. Qualquer um que me visitasse passava por um ritual: eu punha a pessoa sentada em uma cadeira confortável, de costas para mim. Colocava o CD de Cauby e soltava minha voz, entoando “Conceição eu me lembro muito bem...”. Ao terminar, pedia o veredicto do convidado. Um dia, minha cunhada interrompeu uma demonstração de “Bastidores”, de Chico Buarque, e me disse: “Está muito parecido, faz essa peça!”. Daí em diante, pude contar com a lucidez de Flávio Marinho, a quem devo muito por ter investido em minhas ideias e por ter escrito o musical Cauby! Cauby!.

Durante um ano, eu e meus colegas de elenco fomos felizes. Aos poucos, tudo o que Bibi Ferreira me ensinara em Gota d’água, em termos de técnica e música, foi transposto para o palco. O resultado foi uma temporada vitoriosa. Na estreia paulista, Cauby foi aplaudido de pé por uma plateia lotada. Ao fim do espetáculo, ele se aproximou, emocionado, me abraçou e disse baixinho no meu ouvido: “Obrigado”. Como se precisasse!

Cauby se foi. Lamento muito não ter sua voz na nova montagem que comemoraria dez anos de Cauby! Cauby! Seria hilário. Na primeira cena, eu estaria dormindo e o telefone tocaria. A voz de Cauby me convidaria a voltar com o espetáculo: “Vai, Diogo, faz novamente que eu vou adorar! E me faz um favor? Começa com ‘Conceição’?”.  Tudo se transformaria em cena e, logo após uma cortina dourada se baixar, uma voz diria: “Senhoras e senhores, com vocês, Cauby Peixoto!”. Eu viria em silêncio, vestido de Cauby, mas ainda como Diogo, e me transformaria no maior cantor do Brasil de todos os tempos cantando “Conceição”. Ao receber essa homenagem, Cauby talvez sorrisse. Tenho certeza de que ele ficará feliz em ser eternizado dessa forma. Mas, desta vez, do céu!

Cauby Peixoto interpreta um de seus maiores sucessos, "Conceição"



Diogo Vilela fala do espetáculo "Cauby, Cauby"


Diogo Vilela canta "New York, New York", interpretando Cauby Peixoto







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