sexta-feira, 10 de junho de 2016

Um amor verdadeiro - Roberta Faria

Quando chegamos, não havia nada. Era só a velha casa de madeira e um terreno cheio de mato. Logo que a mudança assentou, meus pais  começaram a cavar. "Vamos plantar um pomar, uma horta e um jardim", disseram. Por catálogos, escolheram roseiras coloridas, pés de uva, amora e pêssego, sementes de legumes e verduras. Eu e meus irmãos adoramos: a gente iria comer fruta do pé, construir uma casa na árvore, pendurar um balanço de pneu.

Até que as mudas chegaram. E eram umas coisinhas mirradas - uns galhos de nada, os maiores da grossura de um dedo. Ficamos decepcionados. "Ah, mas é que demora", meus pais explicaram, "Quanto?", a gente insistiu. "Ah, anos." E eu, que era pequena, achei uma porcaria. Esperar tudo isso pra comer uma jabuticaba? Melhor comprar no mercado.

Neste verão, faz 26 anos que isso aconteceu. Meus pais continuam no mesmo endereço, mas hoje, da rua, quase não se enxerga a casa: ela está cercada de árvores. Da última vez que contaram, havia mais de 200 espécies, a maioria de frutas. Há flores e ervas por toda parte, uma horta respeitável, e até milho e feijão eles plantam para comer.

Erguer esse pequeno paraíso foi um esforço enorme, sem folga. Lembro dos meus pais a vida inteira chegando do trabalho e indo para o quintal cavoucar, adubar, podar, regar. Nos fins de semana, a lida começa cedo, e a ideia de tirar férias é uma tortura para eles - quem vai cuidar das plantas?!

Seria infinitamente mais fácil ter só um gramado e comprar a comida na feira. E essa paixão transforma o que seria um trabalho insano em fonte diária de pequenas alegrias. Ver uma semente brotando, o ipê dando as primeiras flores, um pé de carambola carregado de frutas, passarinhos fazendo ninho - e saber que tudo foi feito com as próprias mãos - é motivo de muito orgulho e sorriso lá em casa.

Todo mundo deveria ter uma paixão assim. Algo que te anima a levantar da cama e que te enche de ideias antes de dormir. Que te mantém curioso e te move a aprender coisas novas. Que te faz desligar do resto do mundo quando você está envolvido. Que te exige esforço e paciência, sim, mas te recompensa com resultados que não têm preço. Que alimenta planos e te faz apostar no futuro, mesmo que leve muito tempo para chegar aonde você quer - como plantar um pomar. E, principalmente, que não tenha o peso de uma obrigação - e seja apenas um compromisso com a própria felicidade.

A vida de todos nós já é cheia de "tem que" - a interminável lista de coisas necessárias a cada manhã, de trabalhar a passar fio dental, de dobrar a roupa recolhida a conferir a lição de casa das crianças, de comer mais fibras a declarar imposto de renda. Mas uma paixão, ainda que dê trabalho, deixa a rotina mais leve. São nossos cinco minutos de  férias por dia, que fazem a gente escapar das chatices, recuperar a sanidade e cultivar o gosto pela vida.

A minha é ler. Desde que me entendo por gente, não houve um dia em que eu não tenha aberto um livro, revista, dicionário, gibi, jornal - na falta, também servem folhetos de propaganda, rótulos de embalagem e bulas de remédio. Eu leio em todos os momentos possíveis, e nos outros também. Incontáveis vezes foi a leitura que me salvou de um dia ruim ou me deu a solução para um problema difícil. Ser fisgada por uma boa história é um dos maiores prazeres da minha vida, e buscar novos volumes para colocar na estante, uma alegria infinita. Com certeza eu dormiria mais se não lesse tanto, e possivelmente poderia comprar um carro com o que gastei em livros até hoje - mas não sei como seria feliz.

Por isso, neste ano novo, te desejo que você encontre - ou se reconecte com - uma  grande paixão, seja qual for. E que ela ajude a preencher sua vida com mais graça, leveza e descobertas. Esta edição está cheia de histórias para te inspirar. Boa leitura ;)


(texto publicado na revista Sorria para ser feliz agora nº 77 - jan/fev de 2016)

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