segunda-feira, 20 de junho de 2016

O nazismo entre nós - Walcyr Carrasco



Crianças negras sem pais esperam um lar. Mas muitos casais preferem não adotar, por querer um bebê idealizado

Pela primeira vez desde a morte de Adolf Hitler, a Alemanha relança Mein Kampf (Minha luta), único livro escrito por ele e marco das ideias nazistas. Para muitos de nós, é um susto. Embora seja vendido no Brasil, o relançamento do livro na Alemanha causa a desagradável impressão de que o nazismo está pronto para ser ressuscitado. De fato, existem grupos neonazistas em todo o mundo. É assustador. Sem receber esse título, ideias e comportamentos nazistas fazem parte do cotidiano.

Conheci um casal que queria ter um filho, mas o marido era estéril. Foram aos Estados Unidos, escolheram um doa­dor e hoje vivem felizes com seu filho de olhos azuis. No Brasil, é mais complicado. Mas, em vários países do mundo, um casal, seja de que nacionalidade for, pode escolher o pai ou a mãe genéticos de seu filho. O nome do doador não é fornecido. Sua ficha, sim. Nível educacional, características físicas. Conheço dois outros casais, um formado por duas mulheres, outro por dois homens, que optaram pela fecundação no exterior. Ambos escolheram cuidadosamente o tipo físico da criança. Adivinhem? Olhos azuis, pele branca... se eu disser a qualquer um desses casais que estão seguindo os passos do receituário nazista, ficarão ofendidíssimos. Mas esse não era o escopo fundamental de Hitler? A criação de uma raça superior, ariana, com características físicas definidas? Escolher seu futuro bebê com traços arianos é supor que um tipo humano seja mais belo e inteligente que outro. Nada diferente de Hitler, que escravizou francesas durante a ocupação, para fazerem sexo e gerarem filhos com alemães, a fim de “melhorar” a raça. Enquanto isso, por todo o mundo, milhares de crianças negras e asiáticas vivem em abrigos à espera de um lar. Muita gente escolhe não adotar, por querer um bebê idealizado.

Hitler também acreditava no uso do ser humano por outros humanos. Nos campos de concentração, sucediam-­se as experiências médicas com judeus. O que aconteceu durante o Holocausto beira o indescritível. O preconceito contra judeus continua existindo. Latente na sociedade, mas em muitas oportunidades explode, em muitos lugares do mundo. As vítimas hoje, porém, são preferencialmente os pobres. O corpo dos pobres é usado para a sobrevivência dos ricos. No Brasil, a venda de órgãos é proibida. Em muitos Estados americanos, não. Li que a China vende até no mercado internacional. Aqui, para o transplante, há uma fila. É mesmo? Um amigo ficou gravemente doente há alguns anos. Foi para um grande e caríssimo hospital de São Paulo. Em um dia conseguiu um transplante do fígado. Está bem até hoje. Parentes e amigos – eu inclusive – respiramos aliviados. Salvo! Mas de onde veio esse fígado? Em um dia? Nada foi dito, mas no fundo achamos justo que tenha sido comprado. Na emoção, aceitamos tranquilamente o tráfico de órgãos humanos. Enquanto alguém, mais pobre, na fila de espera, não recebeu o órgão que lhe salvaria a vida. E os mais pobres que secretamente vendem um rim, por exemplo, para ganhar um extra? Achamos normal, é para salvar a vida de alguém querido. Hitler não concordaria?

Concordaria, sim. Os mais pobres são negros, na maioria. Assim como os países africanos vivem à mercê de epidemias e mergulhados na miséria, os pobres do Brasil são segregados. Não vivem em campos de concentração, exatamente. Mas a violência da vida numa favela da metrópole é avassaladora. Os pobres são explorados por traficantes e milícias. A vida não vale nada. Pior: se a polícia mata alguém sem explicação, há uma diferença nítida. Se é de classe média, escândalo absoluto. Se é favelado, miserável, pode haver até um barulho no início. Depois, o assunto é abafado. A mãe chora pelo filho, eu e você comentamos que aqui não tem jeito mesmo. Como os soldados de Hitler, nossa polícia tem o direito de matar. Não oficial, mas implícito.

Sabe-se que há um tráfico de bolivianas para São Paulo. São presas em oficinas de costura. Coreanas também. Tomam delas o passaporte, obrigam-nas a dormir e comer onde trabalham. Salário, fica por conta da passagem, da comida. O trabalho escravo foi revivido por Hitler. Eram os judeus. Aqui, são bolivianas e coreanas.

E temos nos Estados Unidos um pré-candidato à Presidência, Donald Trump, bem colocado nas pesquisas, que promete construir um muro entre Estados Unidos e México. Quem, afinal, venceu a Segunda Guerra Mundial?


(texto publicado na revista Super Interessante de janeiro de 2016)

Nenhum comentário:

Postar um comentário