domingo, 19 de junho de 2016

Sempre cabe mais um - Eduardo Sklarz

Mais gente, mais carros, mais poluição. As megacidades podem tornar a sua vida um inferno. Mas também podem salvar o mundo.

O despertador se encarrega de tirar você da cama, mas talvez nem precisasse: uma sinfonia de motores, buzinas, obras e vizinhos barulhentos deixa claro que é hora de acordar. Você sai para a rua e a coisa só piora - a calçada, o ônibus, o trânsito, o elevador, o banco, o supermercado, o restaurante, o cinema, a balada... todos os lugares parecem transbordar de gente. Bem-vindo à grande guerra do século 21: a luta por espaço nas grandes cidades. Pela primeira vez na história, mais de 50% da humanidade está vivendo em cidades. Mas será que cabe ainda mais gente? Estamos caminhando para um cenário ainda mais calíptico, em que tudo vai virar um grande caos? Porque há tanta gente nas cidades? E qual é a saída (se é que existe) para a superlotação urbana?

De onde vem tanta gente?

Para descobrir, o primeiro passo é entender a superpopulação. E aí vem a primeira surpresa: ela não tem a ver, necessariamente, com a concentração de pessoas. "Uma cidade é superpovoada quando não consegue prover recursos parra todos que vivem nela, e não oferece habitação ou empregos suficientes, por exemplo", diz o especialista americano Carl Haub, do instituto Population Reference Bureau. Faz sentido. Por exemplo: Nova York tem 4 vezes mais gente por km2 do que Johanesburgo (9.500 pessoas por km2, contra 1.900 da metrópole africana). Só que o PIB per capita de Nova York é um dos mais altos do mundo: US$ 56 mil por habitante, mais que o dobro do de Johanesburgo. E, numa pesquisa sobre qualidade de vida feita pela empresa americana Mercer, Nova York ficou em 48º lugar - bem à frente de Johanesburgo, em 90º (São Paulo está em 114º, logo à frente do Rio de Janeiro). Conclusão? A superpopulação urbana não é causada apenas pelo acúmulo de gente. Há outro fator: o baixo desenvolvimento econômico.

Segundo dados da ONU, hoje a migração de áreas rurais responde por apenas 25% do crescimento das cidades. A maioria das pessoas que vai para uma metrópole já morava em áreas urbanas - nas quais, devido ao subdesenvolvimento econômico, não encontrava boas oportunidades de vida. É o caso dos bolivianos que vendem frutas em Buenos Aires, ou dos filipinos que tentam a vida em Tel-Aviv. Em Lagos, na Nigéria, foi o boom do petróleo que fomentou a explosão demográfica. E a indiana Hyderabad atrai 200 mil pessoas por ano com suas empresas de alta tecnologia - tanto que já é conhecida como "Cyberabad". Os novos habitantes das metrópoles não são gente caipira. Muito pelo contrário.

Outra coisa: as altas taxas de natalidade, e não a migração, são as principais responsáveis pelo crescimento urbano. Esse fator é responsável por 50% da expansão dos centros urbanos, principalmente em países pobres. No primeiro mundo, as taxas de mortalidade foram caindo lentamente, durante séculos, e as famílias tiveram tempo de se ajustar a isso (passando a ter menos filhos). É por isso que cidades onde a pressão imigratória é grande, mas a natalidade é baixa, crescem devagar. Nova York e Londres são cidades apinhadas de gente, mas sua população aumenta menos de 0,5% por ano. Já nas cidades do terceiro mundo, a história é bem diferente.

"Houve uma queda brusca na taxa de mortalidade após 1950, mas a sociedade não se adaptou a ela. As pessoas continuam tendo muitos descendentes", diz Carl Haub. Nesse quesito, o contraste entre pobres e ricos é evidente. Na primitiva Somália, 21% das meninas entre 15 e 19 anos têm filhos (na desenvolvida Roma, apenas 1%). Na caótica Bagdad, apenas 10% das mulheres usam algum tipo de anticoncepcional (na moderna Seul, são 66%). Em Niamey, capital do Níger, cada mulher tem em média 8 filhos. Essa multiplicação de gente provoca, claro, uma forte pressão demográfica. É por isso que a subdesenvolvida Lagos, na Nigéria, é a cidade que mais cresce no mundo. De 1950 para cá, sua população aumentou nada menos que 3.000%, chegando a 10 milhões de pessoas, e o caos se instalou: a água começa a faltar e dois terços das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. A maioria divide um quarto com 5 pessoas. Quem tem carro enfrenta em média 3 horas de trânsito para chegar ao trabalho. Um desastre.

Mas superpopulação não é só gente demais e desenvolvimento econômico de menos. A geografia das cidades também ajuda a explicar por que umas ficam mais cheias que outras. Mumbai (antiga Bombaim) começou a atrair gente para trabalhar em seu porto no século 17 e nunca mais parou de crescer. Hoje, concentra 25% da produção industrial, 40% do comércio marítimo e 70% das transações de capitais da Índia. Só que, cercada pelo mar da Arábia e sem muito espaço para crescer, acabou virando a cidade mais densamente povoada do planeta - são mais de 29 mil pessoas por km2, 4 vezes mais do que São Paulo. Em Buenos Aires, muitos jovens saem da casa dos pais para viver em apartamentos bem pequenos, com 30 ou 40 m2. Para suprir essa demanda, antigos casarões estão dando lugar a edifícios com até 100 apartamentos. Onde antes moravam 5 pessoas, hoje se espremem 500. Mas nada se compara à incrível situação de aperto em Hong Kong, onde a habitação é a mais cara do planeta: o aluguel de um apartamento mobiliado e com 3 quartos custa em média US$ 9.700.

Cidade grande faz mal à saúde?

O zoólogo americano Warder Allee, da Universidade de Chicago, foi um dos primeiros a perceber que os animais têm níveis ideais de agrupamento. Ele observou, em 1931, que alguns crustáceos e peixes se reproduziam bem em certas densidades. Abaixo ou acima disso, tudo virava uma bagunça, ameaçando a sobrevivência da espécie. Ninguém sabe exatamente de quanto espaço um ser humano precisa para viver. Mas, com o crescimento das cidades, foram surgindo cada vez mais pesquisas sobre os efeitos psicológicos das aglomerações urbanas. E elas confirmam o que se temia: as grandes cidades mexem, sim,com a cabeça de todo mundo. Nos anos 50, o psiquiatra americano Thomas Rennie entrevistou moradores de Manhattan e constatou que 25% deles apresentavam algum tipo de neurose. Isso deu origem ao livro Mental Health in Metropolis ("Saúde Mental na Metrópole"), o primeiro de uma longa série de estudos que tentam analisar a relação entre as cidades e os mais variados tipos de doença, de esquizofrenia a hipertensão.

Segundo uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia, o estresse virou epidemia - mais de 50% das pessoas sofrem desse mal, típico das cidades grandes. Que o digam os habitantes de Detroit, eleita a metrópole mais estressante dos EUA num ranking divulgado pela empresa American City Business Journals. "Das 50 maiores cidades, Detroit tem mais desemprego, menos aumentos salariais, mais ataques cardíacos e menos dias de sol." Que horror.

Mas, se você se sente mal em lugares apinhados de gente, saiba que nas grandes cidades do passado a coisa era bem pior. Os centros antigos, como Alexandria e Constantinopla, eram formigueiros humanos. Os cálculos da população dessas cidades são feitos com base na área construída (inferida por medições arqueológicas) e em um fator de densidade populacional que ronda as 200 pessoas por hectare. Isso equivale a 50 m2 por pessoa, o que dá 20 mil pessoas por km2 - semelhante ao que vemos hoje nas superpopulosas Karachi, no Paquistão, e Lagos, na Nigéria.

"Pode parecer muito, mas presumimos que as cidades históricas tinham alta densidade para reduzir os custos de transporte, na ausência de meios de locomoção baratos", diz George Modelski, professor de ciência política da Universidade de Washington. No mundo antigo, a campeã do aperto era Roma, onde centenas de milhares de escravos viviam empilhados em construções que podiam chegar a 6 andares. "Roma era populosa porque era a capital de um império e porque oferecia uma porção diária de pão grátis para seus cidadãos", diz Modelski. Segundo ele, Roma chegou a ter 1 milhão de habitantes no ano 200, quando sua densidade bateu em 66 mil pessoas por km2. Perto disso, até um inferno como Mumbai parece suportável.

O que vai acontecer?

Os principais centros urbanos estão tão gigantes que os especialistas inventaram um novo termo, "megacidades", para definir os agrupamentos com mais de 10 milhões de habitantes - como São Paulo, Cidade do México, Seul, Xangai, Nova Délhi e Londres. Segundo a ONU, o número de megacidades passou de duas em 1950 (Tóquio e Nova York) para 20 em 2005. Em 2015 serão 22, sendo que 17 delas no mundo em desenvolvimento. Tóquio já foi batizada de metacidade, pois está em um nível mais alto - superou 30 milhões de habitantes.

Mas calma, não precisa arrancar os cabelos. Esses gigantes continuam crescendo, sim, mas avançam a uma velocidade menor que a média mundial (cerca de 2,5% ao ano). Daqui para a frente, a população deve crescer mais nos centros urbanos médios, com menos de 1 milhão de habitantes. Isso já acontece no Brasil em cidades como Bauru, no interior de São Paulo, e a mineira Uberlândia. Elas seguem a tendência que os analistas chamam de "desmetropolização", ou seja, a diminuição do crescimento das grandes cidades. Em outras palavras: o crescimento econômico está se interiorizando. Isso deve reduzir, ou pelo menos estancar, dois problemas das metrópoles - o excesso de gente e as filas intermináveis. Só que vai demorar. "O ritmo de crescimento global vem desacelerando desde 1965. A população vai continuar aumentando até o final do século, quando deverá se estabilizar. E, a partir daí, quem sabe cair", diz George Modelski.

Nas últimas décadas, a principal resposta da classe média contra o aperto urbano foram os condomínios fechados (e, nos EUA, os chamados "subúrbios"). Em ambos os casos, a proposta é mais ou menos a mesma: morar em bairros afastados - e planejados - ou vilas fora da cidade, onde há mais espaço para viver e respirar. Só que os congestionamentos cada vez maiores e a alta no preço dos combustíveis fizeram disso um mau negócio. E estão produzindo um movimento contrário, que pode inchar ainda mais as cidades. Nos EUA, a nova moda é abandonar os subúrbios e voltar para os centros urbanos. E isso, por incrível que pareça, pode ser bom para o ambiente. Algumas das ideias mais inovadoras no estudo das metrópoles mostram que elas podem fazer bem ao planeta.

Los Angeles sempre foi considerada uma catástrofe ecológica, pois lá mais de 80% das pessoas vão trabalhar de carro - e o trânsito é um inferno. Mas, segundo um estudo recém-divulgado, Los Angeles tem a menor poluição per capita entre as principais cidades americanas. Isso porque, apesar de rodarem muito, os los angelinos gastam menos energia que os habitantes dos subúrbios e seus elegantes jardins - um inocente cortador de grama polui tanto quanto 11 automóveis. "A concentração de pessoas e empresas em áreas urbanas reduz os gastos com água, esgoto, eletricidade, coleta ade lixo, transporte, assistência médica e escolas", diz em um relatório a agência habitat, da ONU. Além de melhorar condições de vida, permitindo que mais gente tenha acesso a saneamento básico e outra coisas fundamentais, o aperto urbano também pode ajudar a reduzir o aquecimento global. É simples. Quanto mais espalhadas estão as pessoas, mais combustível é preciso queimar para levar a elas os bens e serviços de que precisam. O ambiente mais ecológico talvez não seja uma casinha no campo, e sim uma cidade com sistema de transporte eficiente. Mas como chegar a ele?

Para os especialistas, o mais importante é reduzir o número de carros. Isso diminuiria, de uma só tacada, os problemas da poluição, do trânsito e do barulho. "Os projetistas urbanos tendem a pensar no tráfego como se fosse um líquido, e ficam loucos para abrir caminhos para ele", diz Jeffrey Kenworthy, professor de sustentabilidade da Universidade de Murdoch, na Austrália. "Mas, quando constroem avenidas, estimulam o uso do automóvel e aumentam a dependência dele, criando um círculo vicioso."

Ao longo de toda a história das cidades, desde sua criação há 5 mil anos até meados do século 19, elas foram desenhadas levando em conta deslocamentos a pé. A densidade era alta, as ruas estreitas e as pessoas chegavam aonde queriam em no máximo meia hora, pois as cidades raramente ultrapassavam 5 quilômetros de diâmetro. "A partir de 1860, esse modelo entrou em colapso com a pressão demográfica e industrial. Surgiram trens e bondes elétricos capazes de andar a 60 km/h", diz Kenworthy. Com a popularização do carro, na metade do século 20, o cenário mudou de vez: não era mais necessário morar perto do trabalho. E chegamos ao caos.

Contra ele, ninguém duvida de que o transporte coletivo é a melhor saída. Basta fazer as contas. Um carro popular, que leva de 1 a 5 pessoas, ocupa aproximadamente 6 m2 de espaço na rua. Então cada indivíduo requer, pelo menos, 1,2 m2 de área no trânsito. Já um ônibus, que comporta 50 passageiros sem aperto, ocupa 26,5 m2 - o que dá aproximadamente 0,5 m2 por pessoa transportada. É muito mais eficiente.

Só que, quando o transporte coletivo é ruim, as pessoas fogem dele. É por isso que, no Brasil, a venda de carros está crescendo mais rápido na chamada classe C - são famílias que ganham entre R$ 1.000 e R$ 2.000 por mês e toda a vida andaram de condução. Como sofriam com um transporte coletivo ruim, as pessoas migraram para o carro, piorando o caos urbano, assim que tiveram oportunidade de fazer isso. Tudo porque o governo não investiu o suficiente em ônibus e metrô.

"O crescimento explosivo nem sempre cria problemas. Na maioria das vezes, eles são fruto de políticos incompetentes. E isso pode acontecer em cidades grandes ou pequenas", diz a jornalista Erla Zwingle, que foi a 4 continentes para estudar as megacidades. Verdade: a pobreza em Paris e Londres, no século 19, e a violência de Nova York, nos anos 50, mostram que essas cidades já tiveram problemas semelhantes aos que hoje são enfrentados pelas metrópoles do terceiro mundo. Então há esperança. Na próxima vez que você se sentir num pesadelo urbano e ficar com vontade de largar tudo para ir morar no campo, respire fundo e pense: pode não parecer, mas a sua cidade ainda tem salvação.



(texto publicado na revista Super Interessante edição 255 - agosto de 2008)

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