Países não se entendem na hora de mexer com o português
Era pra gente começar 2008 escrevendo diferente. Arquitetada pela CPLP (Comissão de Países de Língua Portuguesa), a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa previa, entre outras alterações, o fim do trema e de alguns acentos e a incorporação das letras k, y e w ao alfabeto oficial.Mas as mudanças - criadas para padronizar o idioma e facilitar a comunicação entre os oitos países que o adotam - correm o risco de não vingar. De novo. A história registra que nunca houve consenso quando uma reforma foi proposta. "Desta vez, é Portugal quem resiste a abandonar as consoantes mudas [como as de 'contacto' e 'direcção'], diz o gramático Evanildo Bechara, presidente da Academia Brasileira de Letras.
Até o século 16 sequer existia um padrão na língua portuguesa. Cada escritor grafava as palavras da forma que lhe convinha. "É a fase fonética, em que se escrevia de acordo com o som. Uma mesma palavra era encontrada de modos diferentes: cinco e cinquo, algem e alguém, muyto e muito", exemplifica a professora Nelly Carvalho, linguista da Universidade Federal de Pernambuco. Do século 16 ao 20, influenciados pelo renascentismo e desejosos do status de "língua de cultura", intelectuais lusitanos abusavam das clássicas consoantes duplas e do y (pharmacia, collega, lyrio), herdado do latim.
Aquela do português
Desde o século 20, vive-se o período simplificado. Conheça as outras fases históricas da nossa língua
Período fonético
Até o Renascimento (metade do século 16) a escrita era pautada pelos sons das palavras. Não havia padrão, embora fosse comum que a duplicação das vogais indicasse sílaba tônica, como em ceeo (céu), consoantes aparecessem juntas (fficar), e o h indicasse hiatos (cahir).
Período pseudo-etimológico
Do século 16 até os primeiros anos do século 20, predomina a influência do latim e da cultura grega. A grafia respeitava, na medida do possível, sua origem etimológica. É o auge dos grafemas ph, th, ch, rh e y (philosophia, theatro, sepulchro, cysne).
O vira-não-vira
Reformas ortográficas são marcadas por reviravoltas
1904
O filólogo Gonçalves Viana propõe a simplificação para valorizar aspectos da fala e se distanciar do latim. A novidade é oficializada em 1911, em Portugal. Em 1915, o Brasil se ajusta aos padrões.
1919
Por influência do acadêmico Osório Duque Estrada, autor da letra do hino nacional, o Brasil cancela as mudanças. Voltamos a usar "ph" e "ch".
1931
Volta a simplificação com o primeiro acordo ortográfico entre Brasil e Portugal, iniciativa da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa.
1934
Getúlio Vargas anula o acordo de 1931. O Brasil volta com todas as consoantes duplas. Por pressão dos professores, a imposição tem fim quatro anos depois.
1943
Lisboa realiza a convenção ortográfica com a intenção de unificar o idioma. Mas só o Brasil faz mudanças como, por exemplo, o "s" em "casa", antes com "z".
1945
Nova convenção luso-brasileira. Dessa vez é o Brasil quem não aceita as consoantes mudas ("óptimo" e "direcção") e o fim do trema. Só Portugal faz as mudanças.
1971
Na era Médici, caem alguns acentos circunflexos diferenciais (almôço, enderêço) e graves (sòmente, últimamente), além de tremas em palavras como saüdade e vaïdade.
1986
O encontro dos países de língua portuguesa, no Rio, é o embrião das mudanças pleiteadas até hoje. Mas Portugal só aceita abrir mão das consoantes mudas a partir de 2017.
2007
Decide-se pressionar os outros países a realizar em 2008 o acordo ortográfico, já assinado pelo Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
(texto publicado na revista Aventuras na História edição 54 - janeiro de 2008)
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