Focamos tanto no amor romântico dos sentimentos que subestimamos o mundo prático das rotinas
O que diferencia sua relação com um amigo da que você tem com sua esposa ou marido? Um amor especial, insubstituível, de vidas passadas... Ou apenas uma maior proximidade?
Muitos dizem com orgulho: "Quando tem amor, todo o resto se resolve." A realidade é o contrário: não é nada fácil ajustar as compatibilidades técnicas que possibilitam a convivência. Amar, a gente pode e deveria amar todo mundo, sem exceção - apoiar o florescimento dos outros. O que justifica um casamento é somente a logística, o quanto aquela proximidade é benéfica (e não me refiro a uma conveniência estagnada). Escolher um marido é parecido com escolher um sócio de uma empresa, bem mais do que admitimos. Para os negócios e também para a felicidade, o romantismo é um obstáculo.
Ora, se minha esposa quiser trabalhar na França e para mim for melhor ficar em São Paulo, sem tempo nem dinheiro para viajar, talvez não faça sentido manter o casamento. Nesse caso, só por apego tentaríamos, com chances de destruir a relação. Por amor, para seguir em parceria, seria melhor aceitar a separação.
Sem tal clareza, problemas logísticos são confundidos com ausência de amor. O outro trabalha 12 horas, chega cansado e não quer transar, o que é entendido como "você não me deseja", que logo vira "você não me ama". Em vez de mexermos na rotina, entramos em discussões intermináveis sobre quem sente o quê. Esse heroísmo que tenta compatibilizar vidas distantes não tem nada a ver com amor.
A logística de minha vida - tudo aquilo que penso não ser - é muito mais responsável por minhas relações do que consigo imaginar. Meu casamento não é um laço mágico entre almas, mas a interface entre armários, profissões, deslocamentos, horários, famílias, libidos, contas bancárias, hábitos... Precisamos reconhecer e lidar com essa objetividade com a mesma frequência com que olhamos para nossa subjetividade. Às vezes ele não prepara o café da manhã para ela porque a cozinha está sempre suja, não porque não a ama. Em vez de uma conversa psicologizante, eles podem tentar lavar a louça antes de dormir.
O casal que começa a furar a bolha do amor romântico pode focar mais livremente nos fluxos concretos que avançam a relação. Se ambos ainda estão preocupados com "você gosta de mim?", uma conversa sobre morar em casas separadas é inviável. A ironia é que justamente essas mudanças logísticas facilitam a prática do amor: que nossa vida inteira, não só um sentimento, potencialize a vida do outro.
(texto publicado na revista Vida Simples nº 147 - julho de 2014)
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