sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Espírito solidário - Wladimir Weltman


Na parede de seu escritório há uma placa com os dizeres: "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis". É de Bertold Brecht, dramaturgo alemão. Vendo crianças com idades entre 2 e 11 anos, todas já sem cabelos por causa do tratamento contra o câncer, correndo no playground da Casa Ronald McDonald, no Rio de Janeiro, e conhecendo Francisco Carlos Neves, 64, em pessoa, a citação de Brecht faz todo sentido. Chico Neves, como o chamam ali, é um desses homens. Desde que Marcos, seu filho,  recebeu diagnóstico de leucemia, Chico não parou mais de lutar e tem feito muita diferença. "Venho de uma família humilde de pescadores. Descendentes de portugueses, que deram duro para que os filhos tivessem boa educação", conta Chico.

Nascido no Rio de Janeiro, em 12 de novembro de 1949, Chico se criou em São Cristóvão. Foi ali que conheceu sua companheira de vida. "Era 1970, durante a Copa do Mundo. O Brasil ganhou a taça Jules Rimet e eu ganhei a Sonia. Estamos juntos até hoje. Ela é minha eterna namorada". A vida de Chico era aparentemente tranquila, engenheiro, funcionário de uma boa empresa, feliz no casamento, pai de dois belos meninos, torcedor do Vasco e morador de São Cristóvão. Mas em 1983 uma notícia abalou seus alicerces: o caçula, Marquinhos, com apenas 2 anos, estava com leucemia. Nos seis anos que se seguiram, Chico e Sonia encararam todo tipo de tratamento na ânsia de curar o menino: "Buscamos as curas convencionais e as não convencionais", confessa. "Gotinhas mágicas, curandeiros, homens santos, umbanda, macumba e candomblé. Numa hora dessas, vale tudo".

Mas em 1989 o médico os chamou para conversar: "Olha, acabou, não tem mais nada a fazer". Chico diz à reportagem: "Era um bom médico, mas eu não aceitei. Perguntei: "Não há mais nada a fazer... no Brasil? Em outro lugar, ainda há o que fazer?" Ele respondeu: 'Tem sim, mas é caro... ' Em Nova York, nos EUA, havia uma médica brasileira fazendo um tratamento experimental - um transplante de medula de não aparentado. Hoje já se faz no Brasil. O Marquinhos tinha 40% de chance. Para nós era o suficiente. Nosso único problema era o dinheiro. O Brasil vivia uma inflação de 60% ao mês e as poupanças tinham sido confiscadas. Nós nos movimentamos, conseguimos ajuda da mídia e do meu time do coração. O Vasco, no qual o Marquinhos era mascote, organizou um jogo. Eles se sagraram campeões no domingo e na segunda-feira todo o time se apresentou em São Januário para jogar. As televisões cobriram o evento e o dinheiro foi para o tratamento. Em 45 dias arrecadamos 40 mil dólares".

Sem lugar para ficar em Nova York, foram para a Casa Ronald McDonald, abrigo para crianças em tratamento de câncer. "Nós pagávamos um valor simbólico de 5 dólares por dia. Ficamos lá três meses. Era uma Torre de Babel. Havia brasileiros, russos, israelenses, formamos um grupo muito legal de amigos, um apoiando o outro". Mas o  tratamento era pesado e Marquinhos tomava drogas que afetavam seu coração. Isso o deixou muito fraco. "Mesmo assim eu não deixava de falar com ele. Os médicos achavam que o Marcos não ouvia nada e que eu e minha mulher éramos malucos. Eu comprava o Jornal dos Esportes na 46, a rua dos brasileiros, e ficava lendo para ele ao pé do ouvido. 'Marquinhos, o Vasco ganhou...' Aí o médico chegou para mim e disse: 'Não quero me meter, mas seu filho está sedado. Não ouve nada'. Respondi: 'Está ouvindo, sim, quer ver? Eu me virei para o Marcos e disse: 'O médico está duvidando de que você me ouve. Para ele acreditar, mexe o dedão do pé direito...E, para espanto do médico, o Marquinhos mexeu o dedão!"

"Descansa, meu filho"

Apesar de todo o tratamento, Marcos não melhorava e sofria bastante. Na noite de 30 de janeiro de 1989, Sonia e Chico conversaram com o menino. "Eram umas 9 e meia da noite e a Sonia falou assim pra ele: 'Marquinhos, olha só! O que você tinha para nos provar já provou. O que tinha de batalhar já batalhou. Mas agora é sua hora de descansar. Descansa, meu filho... '" Às 2 horas da manhã foram chamados e o médico de plantão lhes deu a notícia: Marquinhos havia morrido... Na volta ao Brasil, Chico e a mulher ainda tinham parte do dinheiro do tratamento. Com ele criaram uma sala de recreações para as crianças doentes no hospital do Inca (Instituto Nacional de Câncer), como havia no Memorial Hospital de Nova York, onde Marquinhos se tratou: "Foi meu primeiro trabalho voluntário", Chico conta. "Foi fazendo isso que identificamos a necessidade de uma casa de apoio para pais que vinham ao Rio tratar os filhos, sem condição financeira para alugar ou pagar hotel."

Em 1991, o McDonald's doou a renda do McDia Feliz ao Inca para comprar uma bomba de infusão. Nesse evento, numa  coletiva de imprensa, o então presidente do McDonald's, Peter Rosemberg, apareceu. "Resolvi falar com ele", diz Chico. "Cheguei, cumprimentei e disse: 'Meu nome é Francisco, sou voluntário no Inca, tive um filho com câncer e fiquei hospedado na sua Casa Ronald McDonald de Nova York. Por que no Brasil não tem nenhuma?' Ele me respondeu com outra pergunta: 'Quer me ajudar a criar uma no Brasil?' Foi assim que acabei trabalhando aqui." Uma semana depois, Chico ficou surpreso com a ligação do presidente do McDonald's, dando andamento á conversa e, em 24 de outubro de 1994, surgia a primeira Casa Ronald McDonald da América Latina, no Rio de Janeiro. Hoje existem seis e mais duas estão a caminho. E o Instituto Ronald McDonald realiza uma série de outras atividades voltadas às crianças vítimas do câncer e suas famílias, sendo que Chico fez boa parte disso tudo sem ganhar um tostão. "De 1994 a 1999 meu trabalho era voluntário. Mas em 1999, quando eles resolveram criar o instituto, o McDonald's me pediu para largar o emprego e me dedicar totalmente a isso. Eles disseram: 'É agora ou nunca'".

Apesar de ser o superintendente do Instituto Ronald McDonald no Brasil, Chico ainda exerce ações voluntárias, trabalhando aos sábados e domingos. "O Instituto Ronald McDonald é hoje um órgão que atua com o Inca, a Sociedade de Oncologia Pediátrica e a Confederação Nacional de Apoio à Criança com Câncer, viabilizando projetos. Temos programas como o Diagnóstico Precoce, que capacita profissionais da saúde a identificar sintomas do câncer o mais cedo possível; o programa Atenção Integral, que apoia reformas e construções de unidades ambulatoriais, hospitais e casas de apoio, e outras ações importantes, além de uma série de atividades ligadas ao tema "Os beneficiários são as crianças e os adolescentes mais desprivilegiados do Brasil". O instituto apoia as crianças tratadas pelo SUS, Sistema Único de Saúde. A maioria é carente. Não trabalhamos com clínicas particulares nem com convênios, só com aquelas crianças que não têm condições de bancar um tratamento que é caro". O irmão de Marquinhos, Carlos, hoje com 36 anos, arquiteto, casado e com dois filhos, trabalhou voluntariamente na Casa Ronald McDonald desde sua fundação até 2008, quando foi efetivado como assessor de projetos e obras de lá.

Espírito mensageiro

Chico se empolga quando perguntamos sobre a eficácia do trabalho que desenvolve no país: "Temos ajudado a transformar a história da oncologia pediátrica brasileira. A doença é a primeira causa de morte por enfermidade na faixa etária de 5 a 19 anos, segundo dados do Inca. Os programas que apoiamos beneficiam anualmente cerca de 30 mil crianças e seus familiares. Com isso, a instituição tem contribuído para aumentar as chances de cura da doença, que há 30 anos era de cerca de 15% e hoje passa de 65%, podendo chegar a 85% em alguns casos". Pena Marquinhos não ter se beneficiado disso tudo? "Quando estávamos tentando salvar o Marquinhos, um moço de um grupo religioso me disse: 'Seu filho tem todas as características de um espírito mensageiro', que é aquele que vem à Terra unir as pessoas. Antes de ele ficar doente, tinha um monte de coisa dando errado na minha vida. Mas, quando adoeceu, todos os problemas acabaram e as pessoas se uniram em torno dele. Não sou extremamente religioso, mas acredito que existem razões que vão além da nossa compreensão. Sou grato a Deus e me considero privilegiado por fazer o que faço."




(texto publicado na revista Contigo nº 2029 - 7 de agosto de 2014)

Nenhum comentário:

Postar um comentário