A ciência comprova que a arte da ficção não é supérflua: está, ao contrário, profundamente arraigada na natureza humana, e é necessária a ela
Em uma parede do escritório de John Green em Indianápolis, aparece, emoldurada, a capa de An Imperial Affliction (Um Sofrimento Imperial), de Peter van Houten. É o livro inexistente de um autor fictício: Hazel, a protagonista de A Culpa É das Estrelas, leitora culta sensível que conhece de cor versos de T. S. Eliot, é fascinada pela obra do recluso Van Houten (no filme, interpretado com antipatia impecável por Willem Dafoe). O romance de Van Houten ocupa um lugar especial na vida de Hazel, da mesma forma que, pode-se supor, os livros de John Green ocupam na vida de milhões de jovens leitores. Foi uma leitora entusiasmada de Green quem criou a capa para o livro falso, como que tentando dar um traço de palpabilidade ao mundo fictício de A Culpa É das Estrelas. Esta é uma singularidade espetacular da espécie humana: pelo exercício de contar e ouvir histórias - nos mais variados meios: conversação, livros, internet, cinema - homens e mulheres se importam com pessoas que não lhes são próximas, que não estão mais vivas, ou que nem sequer existem.
A ficção é um traço definidor da humanidade, e como tal se pode afirmar que ela tem raízes biológicas profundas. Cultivar o hábito da leitura (e, em especial, da boa leitura) surte efeitos nítidos: desenvolve a imaginação, o vocabulário e o conhecimento, a capacidade de associar - de usar a inteligência de forma mais plena, enfim. Não é acaso, por exemplo, que todos os jovens de grande promessa nos estudos e na carreira mostrados nesta reportagem sejam leitores vorazes. Mas os mecanismos específicos da ficção (assim como grande parte do funcionamento do cérebro humano) estão muito longe de ser satisfatoriamente compreendidos pela ciência. "Ainda que a ficção seja uma atividade exclusivamente humana, as razões pelas quais a apreciamos e seu impacto sobre o cérebro são mistérios que a ciência mal começou a desvendar", diz Krish Sathian, neurocientista da Universidade Emory, nos Estados Unidos.
O mistério da ficção está perfeitamente resolvido na fala de um dos maiores personagens de ficção da história da literatura. Na peça de William Shakespeare que leva seu nome, Hamlet observa um ator que chora ao apresentar uam cena sobre Hécuba, a rainha de Troia, que vê seu marido, o rei Príamo, ser morto por Pirro, guerreiro grego. Quando se vê sozinho em cena, Hamlet começa um de seus marcantes monólogos com uma pergunta: "Quem é Hécuba para ele, ou quem é ele para Hécuba, para que ele chore por ela?". Em algumas universidades americanas, uma nova vertente da teoria literária vem recorrendo à psicologia evolutiva - que estuda o comportamento humano a partir da biologia darwinista - para responder a essa pergunta de Hamlet. "Não é mistério saber por que informações verdadeiras importam para nossa sobrevivência. Mas é bem mais desafiador, para a ciência, entender por que nos importamos com os dramas de mentirinha de personagens inventados", diz Jonathan Gottschall, da Universidade Washington e Jefferson, autor de The Storytelling Animal (em tradução aproximada, O Anima que Conta Histórias). Gottschall levanta duas respostas possíveis, não totalmente incompatíveis entre si. Há quem argumente que a ficção é uma espécie de efeito colateral das adaptações pelas quais o cérebro humano foi moldado ao longo de nossa história evolutiva. O ser humano é uma espécie gregária e cooperativa - e, se nossa mente está configurada para ter empatia com a dor do próximo, talvez, por acidente, ela também se importe com a dor de figuras que não existem. Gottschall inclina-se para outra explicação: a ficção não é uma "falha de programação", mas um instrumento que traz vantagens para nossa sobrevivência. "Há estudos que mostram que a ficção melhora nossa capacidade para a empatia, nossas habilidades sociais e nossa inteligência emocional", diz Gottschall.
As emoções morais que facilitam a cooperação entre seres humanos são centrais em Comeuppance (Retribuição), ambicioso estudo de William Flesch, da Universidade Blandeis, que tenta explicar por que nos interessamos pelo destino de Hécuba ou Hamlet. "Costumamos pensar na cooperação como oposta à competição, mas não é necessariamente assim. Seres humanos competem para ver quem é mais cooperativo", diz Flesch. Nessas disputas cooperativas, é essencial ter não apenas empatia pelo próximo, mas também raiva de quem deliberadamente prejudica outra pessoa. "Não só isso: sentimos prazer nessa raiva, e por isso buscamos razões para ter raiva", diz Flesch. Estaria aí a raiz do prazer que sentimos em acompanhar a ação de vilões cheios de artifícios - seja o Iago de Otelo, de Shakespeare, seja a Carminha ou o Félix da novela das 9.
Empatia é um conceito-chave para entender as razões de sermos animais que narram histórias. O cérebro é ele mesmo empático. "Quando você lê um romance, coloca-se no lugar do personagem", diz Véronique Boulenger, do Laboratório de Dinâmica da Linguagem, na França. "Regiões do cérebro do leitor que seriam ativadas se ele estivesse fazendo o mesmo que o personagem entram em ação." Se o personagem, por exemplo, está caminhando, áreas cerebrais ligadas à motricidade são ativadas - mesmo que o leitor esteja estendido no sofá. Achados similares foram feitos por Krish Sathian em seus estudos sobre a linguagem figurada. Uma metáfora como "cantora com voz de veludo" ativa áreas sensórias do cérebro, como se estivéssemos apalpando um pedaço de veludo. O mesmo não se dá quando lemos ou ouvimos "cantora de voz agradável".
Keith Oatley, professor de psicologia cognitiva na Universidade de Toronto, no Canadá - e ele mesmo um autor de ficção - sustenta que o mergulho nas histórias produz uma simulação mental tão vívida nos leitores quanto as simulações de realidade virtual no computador. Ao lado do colega Raymond Mar, da também canadense Universidade de York, Oatley publicou estudos que comprovam um lugar-comum da educação: ler faz bem. "A ficção dota as pessoas de maior capacidade de empatia e compreensão dos outros", diz Oatley. Seu colega Mar é um tanto mais cauteloso. "Sou muito conservador na interpretação de resultados de pesquisa, e essa é uma área que ainda está nos seus primórdios. Mas a evidência de que a leitura ajuda a desenvolver habilidades sociais de crianças está, sim, se acumulando", diz. Mar conduziu testes com ressonância magnética em 86 pessoas, ora estimuladas pela leitura de ficção, ora por ações típicas do convívio social, e concluiu que há uma superposição substancial das conexões neuronais que são acionadas para compreender histórias com aquelas voltadas à interação real entre as pessoas.
O pesquisador adverte, porém, que nem todo gênero literário carrega o potencial de promover a empatia. Romances como os da inglesa Jane Austen (1775-1817), com sua observação sutil das nuances de caráter e das complexas manobras de heroínas desassistidas na rígida sociedade inglesa da época, estariam entre os mais apropriados para treinar habilidades sociais. Katrina Fong, aluna de Mar, aprofundou-se no estudo do impacto de diferentes variedades literárias - e concluiu que um gênero menos centrado nos sentimentos humanos, como a ficção científica, não influenciaria tanto nossa capacidade de empatia. Restam dúvidas ainda sobre a eficácia da ficção audiovisual. "Alguns estudos sugerem que crianças que assistem a muitas horas de televisão têm perdas na teoria da mente", diz Véronique Boulegner. "Teoria da mente" é o termo científico para a habilidade de assumir o ponto de vista do outro.
Nosso cérebro, portanto, está configurado para que choremos por Hécuba, que perdeu o marido na guerra. Algumas histórias - e as razões para tanto ainda estão por ser averiguadas pela ciência - são mais eficientes do que outras em produzir essa comoção, essa empatia que define o melhor de nossa humanidade comum. O talento do narrador certamente faz diferença: a história de Romeu e Julieta foi contada por uma plêiade de autores italianos hoje conhecidos apenas de especialistas em literatura renascentista, mas só a versão de William Shakespeare tem feito espectadores e leitores chorar há quatro séculos (em certo sentido, aliás, o best-seller de John Green pertence à matriz do amor trágico dos amantes de Verona, ainda que o título venha de outra peça de Shakespeare, Júlio César).
Os depoimentos que acompanham esta reportagem confirmam a importância da leitura de ficção para a realização na vida e na carreira - mesmo para quem opta por profissões que nada têm a ver com artes e humanidades. O sociólogo Max Weber, no início do século XX, observava que a ascensão da burocracia como forma de organização social estava mudando o ideal da educação europeia. Antes buscava-se formar homens de cultura, com amplitude de interesses e conhecimentos, mas a burocracia pedia outro tipo de pessoa: o especialista, estreitamente limitado a uma única área de conhecimento. A natureza humana, porém, resiste ao cabresto tecnocrático: precisamos de arte, de ficção, de boas histórias. É John Green, mestre em contar histórias para jovens, quem define: "Deveria ser impossível sair da própria cabeça. Mas, lendo ou escrevendo, fazemos isso.E parece um milagre".
A ficção é um traço definidor da humanidade, e como tal se pode afirmar que ela tem raízes biológicas profundas. Cultivar o hábito da leitura (e, em especial, da boa leitura) surte efeitos nítidos: desenvolve a imaginação, o vocabulário e o conhecimento, a capacidade de associar - de usar a inteligência de forma mais plena, enfim. Não é acaso, por exemplo, que todos os jovens de grande promessa nos estudos e na carreira mostrados nesta reportagem sejam leitores vorazes. Mas os mecanismos específicos da ficção (assim como grande parte do funcionamento do cérebro humano) estão muito longe de ser satisfatoriamente compreendidos pela ciência. "Ainda que a ficção seja uma atividade exclusivamente humana, as razões pelas quais a apreciamos e seu impacto sobre o cérebro são mistérios que a ciência mal começou a desvendar", diz Krish Sathian, neurocientista da Universidade Emory, nos Estados Unidos.
O mistério da ficção está perfeitamente resolvido na fala de um dos maiores personagens de ficção da história da literatura. Na peça de William Shakespeare que leva seu nome, Hamlet observa um ator que chora ao apresentar uam cena sobre Hécuba, a rainha de Troia, que vê seu marido, o rei Príamo, ser morto por Pirro, guerreiro grego. Quando se vê sozinho em cena, Hamlet começa um de seus marcantes monólogos com uma pergunta: "Quem é Hécuba para ele, ou quem é ele para Hécuba, para que ele chore por ela?". Em algumas universidades americanas, uma nova vertente da teoria literária vem recorrendo à psicologia evolutiva - que estuda o comportamento humano a partir da biologia darwinista - para responder a essa pergunta de Hamlet. "Não é mistério saber por que informações verdadeiras importam para nossa sobrevivência. Mas é bem mais desafiador, para a ciência, entender por que nos importamos com os dramas de mentirinha de personagens inventados", diz Jonathan Gottschall, da Universidade Washington e Jefferson, autor de The Storytelling Animal (em tradução aproximada, O Anima que Conta Histórias). Gottschall levanta duas respostas possíveis, não totalmente incompatíveis entre si. Há quem argumente que a ficção é uma espécie de efeito colateral das adaptações pelas quais o cérebro humano foi moldado ao longo de nossa história evolutiva. O ser humano é uma espécie gregária e cooperativa - e, se nossa mente está configurada para ter empatia com a dor do próximo, talvez, por acidente, ela também se importe com a dor de figuras que não existem. Gottschall inclina-se para outra explicação: a ficção não é uma "falha de programação", mas um instrumento que traz vantagens para nossa sobrevivência. "Há estudos que mostram que a ficção melhora nossa capacidade para a empatia, nossas habilidades sociais e nossa inteligência emocional", diz Gottschall.
As emoções morais que facilitam a cooperação entre seres humanos são centrais em Comeuppance (Retribuição), ambicioso estudo de William Flesch, da Universidade Blandeis, que tenta explicar por que nos interessamos pelo destino de Hécuba ou Hamlet. "Costumamos pensar na cooperação como oposta à competição, mas não é necessariamente assim. Seres humanos competem para ver quem é mais cooperativo", diz Flesch. Nessas disputas cooperativas, é essencial ter não apenas empatia pelo próximo, mas também raiva de quem deliberadamente prejudica outra pessoa. "Não só isso: sentimos prazer nessa raiva, e por isso buscamos razões para ter raiva", diz Flesch. Estaria aí a raiz do prazer que sentimos em acompanhar a ação de vilões cheios de artifícios - seja o Iago de Otelo, de Shakespeare, seja a Carminha ou o Félix da novela das 9.
Empatia é um conceito-chave para entender as razões de sermos animais que narram histórias. O cérebro é ele mesmo empático. "Quando você lê um romance, coloca-se no lugar do personagem", diz Véronique Boulenger, do Laboratório de Dinâmica da Linguagem, na França. "Regiões do cérebro do leitor que seriam ativadas se ele estivesse fazendo o mesmo que o personagem entram em ação." Se o personagem, por exemplo, está caminhando, áreas cerebrais ligadas à motricidade são ativadas - mesmo que o leitor esteja estendido no sofá. Achados similares foram feitos por Krish Sathian em seus estudos sobre a linguagem figurada. Uma metáfora como "cantora com voz de veludo" ativa áreas sensórias do cérebro, como se estivéssemos apalpando um pedaço de veludo. O mesmo não se dá quando lemos ou ouvimos "cantora de voz agradável".
Keith Oatley, professor de psicologia cognitiva na Universidade de Toronto, no Canadá - e ele mesmo um autor de ficção - sustenta que o mergulho nas histórias produz uma simulação mental tão vívida nos leitores quanto as simulações de realidade virtual no computador. Ao lado do colega Raymond Mar, da também canadense Universidade de York, Oatley publicou estudos que comprovam um lugar-comum da educação: ler faz bem. "A ficção dota as pessoas de maior capacidade de empatia e compreensão dos outros", diz Oatley. Seu colega Mar é um tanto mais cauteloso. "Sou muito conservador na interpretação de resultados de pesquisa, e essa é uma área que ainda está nos seus primórdios. Mas a evidência de que a leitura ajuda a desenvolver habilidades sociais de crianças está, sim, se acumulando", diz. Mar conduziu testes com ressonância magnética em 86 pessoas, ora estimuladas pela leitura de ficção, ora por ações típicas do convívio social, e concluiu que há uma superposição substancial das conexões neuronais que são acionadas para compreender histórias com aquelas voltadas à interação real entre as pessoas.
O pesquisador adverte, porém, que nem todo gênero literário carrega o potencial de promover a empatia. Romances como os da inglesa Jane Austen (1775-1817), com sua observação sutil das nuances de caráter e das complexas manobras de heroínas desassistidas na rígida sociedade inglesa da época, estariam entre os mais apropriados para treinar habilidades sociais. Katrina Fong, aluna de Mar, aprofundou-se no estudo do impacto de diferentes variedades literárias - e concluiu que um gênero menos centrado nos sentimentos humanos, como a ficção científica, não influenciaria tanto nossa capacidade de empatia. Restam dúvidas ainda sobre a eficácia da ficção audiovisual. "Alguns estudos sugerem que crianças que assistem a muitas horas de televisão têm perdas na teoria da mente", diz Véronique Boulegner. "Teoria da mente" é o termo científico para a habilidade de assumir o ponto de vista do outro.
Nosso cérebro, portanto, está configurado para que choremos por Hécuba, que perdeu o marido na guerra. Algumas histórias - e as razões para tanto ainda estão por ser averiguadas pela ciência - são mais eficientes do que outras em produzir essa comoção, essa empatia que define o melhor de nossa humanidade comum. O talento do narrador certamente faz diferença: a história de Romeu e Julieta foi contada por uma plêiade de autores italianos hoje conhecidos apenas de especialistas em literatura renascentista, mas só a versão de William Shakespeare tem feito espectadores e leitores chorar há quatro séculos (em certo sentido, aliás, o best-seller de John Green pertence à matriz do amor trágico dos amantes de Verona, ainda que o título venha de outra peça de Shakespeare, Júlio César).
Os depoimentos que acompanham esta reportagem confirmam a importância da leitura de ficção para a realização na vida e na carreira - mesmo para quem opta por profissões que nada têm a ver com artes e humanidades. O sociólogo Max Weber, no início do século XX, observava que a ascensão da burocracia como forma de organização social estava mudando o ideal da educação europeia. Antes buscava-se formar homens de cultura, com amplitude de interesses e conhecimentos, mas a burocracia pedia outro tipo de pessoa: o especialista, estreitamente limitado a uma única área de conhecimento. A natureza humana, porém, resiste ao cabresto tecnocrático: precisamos de arte, de ficção, de boas histórias. É John Green, mestre em contar histórias para jovens, quem define: "Deveria ser impossível sair da própria cabeça. Mas, lendo ou escrevendo, fazemos isso.E parece um milagre".
(texto publicado na revista Veja edição nº 2373 -ano 47 - nº 20 - 14 de maio de 2o14)
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