domingo, 28 de setembro de 2014

Difícil é começar - Eugenio Mussak


De onde vem a força para os nossos projetos, das pequenas vontades às grandes realizações

"Terminada a faxina e guardados os cabos e defesas, prendi no depósito da proa, junto com um par de remos de Paraty, a minha vassoura de cabo pintado. Era 31 de outubro. Dia das Bruxas. Nem me dei conta. Descendo para o Sul, me afastando a todo pano da infinita segurança de Jurumirim, com bruxas ou sem elas, acabava de varrer da minha viagem a pior espécie de poeira que uma vassoura pode afastar: a de nunca começar."

Esse é o parágrafo final da introdução do livro Mar Sem Fim, de Amyr Klink, que conta a viagem em que ele navegou sozinho ao redor da Antártica. Mais que um relato de uma aventura, o livro contém uma grande quantidade de ensinamentos, como a importância do planejamento, da superação, da preocupação com os detalhes, da força que tem a determinação inquebrantável. A mim, entretanto, a lição que mais impactou foi a contida nas primeiras páginas, a da vassourinha que varreu a poeira da estagnação, da inércia, do imobilismo. A poeira de nunca começar.

O livro não poderia ter melhor início. Digo isso porque sinto o quanto as pessoas são afetadas pela síndrome do não começar. Quando iniciamos, temos a chance de realizar. Se não começamos, não temos o que terminar.

Aquela viagem do Amyr Klink, como tantas outras que ele já fez, não estava ligada a nenhum projeto maior. Ninguém cobrava dele qualquer resultado, a não ser ele mesmo. Ele podia escolher, inclusive, ir ou não ir. Ninguém estava lhe exigindo nada. Em outras palavras, ele não fez o que fez por obrigação, e sim por autodeterminação. Definiu um dia para começar a viagem, e pronto. Afastou a poeira e inflou as velas.

"O duro é cair na água" - dizia o técnico de natação, tentando animar seus tiritantes atletas no inverno de Curitiba, entre os quais eu me encontrava. "Depois você nem sente mais o frio" - completava, sorrindo e batendo no peito. Ele tinha razão, pois, além da água estar em uma temperatura superior à do ar, o próprio movimento de nadar produz calor, e você para de sentir frio. Em minha opinião, entretanto, a grande dificuldade não estava em cair na água, e sim em sair da cama cedinho e cruzar a cidade de ônibus até o clube para então treinar por uma hora antes de ir para o colégio. Não houve um dia sequer que eu não pensasse em faltar ao treino.

Hoje percebo que, muito mais do que meus músculos e meu aparelho cardiorrespiratório, o que eu estava treinando mesmo era minha vontade, essa poderosa senhora do destino. Lembro também da satisfação que tomava conta de meu corpo quando completava o treino: autossuperação.

Realmente, o começar é o mais difícil. Seja treinar um esporte, frequentar uma academia, realizar um trabalho, ir a uma festa, fazer uma viagem, e até escrever este artigo. Começar foi mais difícil que concluí-lo. Impressionante como as ideias fluem depois que os dedos tocam as teclas.

Os três motores

Três são os protagonistas de nossas histórias de realização: o sentimento, o pensamento e a atitude. Costumo dizer que os três estão sempre juntos, alimentam-se um do outro e são capazes de produzir maravilhas. Entretanto, é variável a ordem em que se manifestam. Quem aparece primeiro nem sempre é o mesmo.

Em condições "normais", quando permitimos que o fluxo seja natural, quem vai puxar o trem será um sentimento, que eu vou chamar aqui de "desejo". Quando você deseja algo, vai se mobilizar para atendê-lo. Digamos que você, de repente, sinta forte desejo de tomar um sorvete. Até experimenta, antecipadamente, o doce sabor e a gelada densidade macia do creme derretendo na boca. Você simplesmente precisa de um.

Mas não há um sorvete à sua frente. Aliás, você está em casa. Precisa sair para comprá-lo. Então, primeiro pensa aonde ir. A propósito, onde está a chave do carro? Pensamentos, que surgem provocados pelo sentimento chamado desejo, colocam-se à sua disposição. Passada a fase da racionalização, você levanta do sofá, encontra a chave do carro e age. É a hora da atitude. E assim você vai até a sorveteria, escolhe o sabor, paga a conta e sacia o desejo. Fim da aventura.

Nesse caso, a sequência foi a mais natural: sentimento - pensamento - atitude. Nada de errado nisso, a não ser o fato de que, se você se render a esse modelo sempre, fará poucas coisas, pois nossos desejos estão sempre ligados aos impulsos de prazer, e nem tudo o que temos que fazer é prazeroso a priori. Em outras palavras, se você ficar esperando a ordem dos desejos para entrar em movimento, provavelmente ficará restrito à tríade comida, descanso e sexo. Não necessariamente nessa ordem. E qual é a alternativa? Colocar o pensamento na frente, pois ele é capaz de gerar um sentimento que, nesse caso, se chamará vontade. Aliás, essa seria a diferença entre desejo e vontade. Enquanto o primeiro é biológico, a vontade depende do pensamento. Poderíamos até dizer que a vontade é um tipo especial de desejo, criado a partir de um pensamento.

Tudo o que fazemos na vida, além de comer, descansar e fazer sexo, vai depender da vontade. Trabalhar, estudar, exercitar-se, desenvolver projetos, enfrentar dificuldades. Todos são exemplos de atitudes que derivaram de um pensamento prévio.

Digamos que, um dia, você acorde pensando que seria bom para sua carreira se você tivesse uma pós-graduação. Há cursos disponíveis, está na época de fazer a aplicação, você dispõe do dinheiro e tem as noites livres. Tudo certo. A não ser pelo fato de que você percebe que, nos próximos dois anos, ficará condicionado àquela atividade. E terá que assistir aulas, ler livros, desenvolver um projeto. Nessa hora, bate aquela preguiça...

É nesse momento que o pensamento tem que agir. Racionalmente, você sabe que esse curso lhe trará novos aprendizados, que conhecerá pessoas, aumentará seu networking, o estudo ampliará suas janelas da percepção e o mundo lhe abrirá novas portas de oportunidade. Além disso, dois anos transcorrerão, faça você sua pós ou não. Se fizer, em dois anos terá um diploma. Se não fizer, não o terá. E o tempo terá passado igual.

Você então se levanta e vai fazer a matrícula. Essa é a atitude que derivou do sentimento vontade que, por sua vez, foi criado pela força de um pensamento firme e bem estruturado. Nesse caso, a sequência foi: pensamento - sentimento - atitude.

Há ainda a terceira combinação: pensamento - atitude - sentimento. É o caso de minhas aulas de natação na juventude. Ou de sua academia de hoje. Você acorda, pensa sobre o que deve fazer e, simplesmente, faz. Não fica esperando o sentimento chegar. Age. Mas, como os três são inseparáveis, o sentimento virá, seguirá o movimento, será gerado pelo fazer. E, nesse caso, também terá nome: satisfação.

O arbítrio

Kant dizia que nossa vida é movida por três forças: os desejos, as vontades e os arbítrios. A diferença entre desejo e vontade, já vimos qual é. Já o arbítrio seria a decisão de atendê-los ou não. A consciência desse fato e a disposição para assumir a responsabilidade de atender - ou não - às duas molas propulsoras definiriam, nas pessoas, o grau de maturidade. Kant, o filósofo alemão obcecado pelo racionalismo e pela disciplina, antecipou, com suas palavras, em séculos, a vassourinha do Amyr Klink.

Ganhei o livro do próprio Amyr, em 2002. Mais uma década depois, a alegoria da vassourinha livrando-me da poeira do não começar está firme em minha cabeça, e ás vezes surge ameaçadora, como aquela que carregava baldes de água para um Mickey aprendiz de feiticeiro no filme Fantasia, pedindo-me para ser usada.

E então me dou conta de que não há vitória contra tal poeira. Ela volta a se acumular se não estivermos sempre a limpar. Felizmente temos a vassoura. Usá-la, ou não, depende de nós, como Kant nos explicou.




(texto publicado na revista Vida Simples nº 149 - setembro de 2014)






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