A vida simples e a morte revoltante do cinegrafista Santiago Andrade
Seu perfeccionismo o levou a voltar à manifestação - onde foi atingido pelo rojão
O cinegrafista Santiago Andrade, de 49 anos, acordou às 4 horas da manhã na quinta-feira dia 6 e se sentou à beira da cama. Uma dor no ombro o incomodava. De tanto usar câmeras grandes e pesadas - ele as preferia porque deixavam as imagens menos tremidas -, Santiago estava com um princípio de hérnia de disco. A mulher sugeriu que tomasse um analgésico e voltasse a deitar. Ele seguiu o conselho e ficou na cama até mais tarde. Seu expediente na TV Bandeirantes só começaria à 1 e meia da tarde, e o dia prometia ser agitado, com manifestações marcadas pela cidade.
Santiago chegou ao trabalho meia hora antes do horário, como de costume. Preferia fazer tudo com calma. Pegou o equipamento no almoxarifado e partiu com a repórter Fernanda Corrêa para uma gravação no centro da cidade. A tarefa era tranquila, gravar chamadas para alguns telejornais da casa. Já eram 7 horas da noite quando Fernanda recebeu um telefonema da chefia: antes de voltar, deveriam passar numa manifestação que acontecia nas proximidades da Central do Brasil, apenas para um registro rápido. Black blocs e polícia se enfrentavam e todas as emissoras de TV já estavam no local. A dupla partiu de carro rapidamente e chegou já no meio do confronto. Bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral explodiam por todos os lados.
Santiago costumava ser cuidadoso nesse tipo de situação. Só saiu do carro quando as explosões diminuíram. Gravou cinco minutos de imagens, apenas para garantir o registro. Depois, Santiago e Fernanda, a repórter, decidiram ir embora, porque o conflito estava de novo mais intenso. Já estavam voltando para o carro, quando Santiago, conhecido por seu perfeccionismo, parou para fazer um último registro. Eram 7h40 da noite.
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Santiago Andrade nasceu em Botafogo, na Zona Sul do Rio, numa família humilde. Seu pai trabalhava como porteiro. A mãe era dona de casa. Santiago estudou em escola pública a vida inteira e não teve dinheiro para fazer faculdade. Na juventude, quis servir no Exército, mas não se adaptou à carreira militar. Prestou concurso para os Correios e trabalhou por dez anos numa agência de Copacabana. Já casado, tinha um sonho: ser cinegrafista da televisão. Incentivado pela mulher, Arlita, Santiago abandonou o emprego. Com o dinheiro da indenização, comprou a primeira câmera.
Não foi fácil se firmar na profissão. Ele começou registrando casamentos e formaturas. Arlita trabalhava como assistente, segurava os cabos de iluminação. Mais tarde, conseguiu participar de uma oficina de filmagem na TV Globo e começou a ser chamado para fazer bicos como câmera de novelas. Também fazia pequenos trabalhos para produtoras, registrava eventos promocionais. Num deles, conheceu um diretor da TV Bandeirantes. Graças a ele, conseguiu seu primeiro emprego de cinegrafista com carteira assinada. Santiago começou trabalhando como câmera de estúdio nos programas de auditório da Band. Em pouco tempo, foi transferido para a reportagem. "Sempre foi sua paixão. Ele dizia que queria mostrar o mundo para as pessoas", diz Arlita.
Os dois se conheceram quando Santiago ainda servia no Exército. Ele era um garoto de 19 anos, Arlita já tinha 35, era divorciada e mãe de três filhos. A diferença de idade não atrapalhou. Santiago se dizia apaixonado e começaram a namorar. Logo tiveram uma filha, Vanessa, hoje com 29 anos e também jornalista. Santiago e Arlita moravam no bairro do Leme, onde Arlita tinha uma creche. Também tinham uma casa na Praia de Itaipuaçu, região metropolitana do Rio, para onde iam todos os fins de semana e feriados. Mantinham uma rotina trivial, cuidavam do jardim e do quintal.
Em dez anos como cinegrafista, Santiago participou de inúmeras coberturas. Registrou tragédias como a catástrofe na região serrana do Rio, em 2011. Na cobertura, saiu sem bagagem e passou duas semanas inteiras em Teresópolis. Teve de comprar roupas na cidade para se trocar. Ganhou dois prêmios por mostrar as mazelas do transporte público carioca - tema do protesto daquela quinta-feira fatídica. Acompanhava também operações policiais nos morros do Rio. "Ele dizia que gostava do factual, de tiro, porrada e bomba", diz a repórter Camila Grecco, de 36 anos, sua colega na Band. "Mas era um dos câmeras mais cuidadosos nesse tipo de situação. Só entrava numa favela se tivesse certeza de que todos estavam seguros."
Os colegas dizem que Santiago não reclamava nem das tarefas mais ingratas. Tinha fama de perfeccionista. Cinegrafista experiente, era um dos poucos com paciência para os repórteres novatos. Dava dicas de enquadramento, roupas e postura. Era popular na Band. Em setembro passado, quando promoveu um churrasco no botequim em frente à emissora para comemorar seu aniversário, toda a redação estava presente. "Ele fazia o que gostava. E batia no peito dizendo que, se morresse fazendo seu trabalho, morreria feliz", diz Arlita.
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Na manhã de segunda-feira dia 10, os médicos constataram a morte cerebral de Santiago. Seu corpo foi cremado na quinta-feira, dia 13, às 11 horas, no Memorial do Carmo, no bairro do Caju, em cerimônia fechada para a família.
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