sábado, 27 de setembro de 2014

Para sempre Toscana - Déborah de Paula Souza


Um roteiro amoroso, com mesa farta e lembranças maravilhosas, compõe o caderno de viagem da designer Vivian Calissi, que nasceu na Toscana e mantém uma casa em São Paulo e outra em Lucca

Meu avô materno era marceneiro, veio para o Brasil em 1951, prosperou, abriu uma fábrica de móveis e chamou meus pais. Eu tinha 7 anos quando cheguei a São Paulo, em 1973, vinda de Bagni di Lucca, na província de Lucca, na Toscana. Em casa, só se falava italiano. Eu e meu irmão, o Diego, aprendemos português em seis meses. Queria me livrar do sotaque porque na escola me chamavam de Rita Pavone (cantora italiana famosa na época). Eu me tornei designer de interiores. Meu irmão herdou o talento de comerciante do meu pai e do meu avô paterno, que eram sorveteiros, e voltou para Lucca, onde o seu bar, My Mel, é famoso pelo sorvete - adoro o de avelã.

Em qualquer lugar do mundo, você reconhece um italiano pelo sapato de couro feito à mão e pelo modo como ele pede café, curto, longo, com espuma de leite fria ou quente... Tudo o que diz respeito à cozinha, nós levamos a sério. Os italianos só consomem comida fresca, preparada na hora. Na Toscana, casas e restaurantes têm horta ou árvores frutíferas no quintal. As pessoas trocam figos, alcachofras... e declaram coisas do tipo: "Esta é a melhor abobrinha do muno!". Congelado? Somos contra. Todo italiano é hipocondríaco e tem certeza que congelado mata. Para dar ideia do que a cozinha representa para minha família, os momentos de tensão na infância eram aqueles em que minha mãe retirava o macarrão da panela. Ainda não havia importação no Brasil, e as marcas nacionais passavam do ponto al dente. A missão dos parentes que nos visitavam era trazer pasta Barilla, funghi secchi e uma farinha feita à base de castanha doce, típica da Toscana, que sempre dava confusão na alfândega. No meu primeiro idioma, não existe a palavra saudade. Aprendi aqui, sentada na porta de casa, esperando as cartas da minha avó. Hoje, toda a família de origem já voltou para a Itália. Eu me casei com um brasileiro e moro com ele, Rudge (Rodolfo Bittencourt), e meus filhos, Raul e André. Mas temos uma casa em Lucca e viajamos várias vezes ao ano. Serei sempre dividida no Brasil, sou a italiana, e lá, a brasileira.

Pintura ensolarada

A Toscana é verde-clara e cheia de amarelos. No verão, o sol brilha até 9 da noite. No inverno, neva nos montes, mas Lucca está no nível do mar e o clima é mais ameno. Em meia hora você chega às montanhas e em 20 minutos à praia. Meus amigos - se não viajam comigo - sempre me ligam quando vão para a região. Meu conselho: pare no aeroporto de Pisa e alugue um carro. A melhor coisa que pode acontecer é você se perder. A estrada do Chianti, por exemplo, parece pintada à mão. Fica na região de Firenze. O caminho está cheio de placas indicando pontos de agroturismo, pequenas fazendas que recebem hóspedes e visitantes para degustação de vinhos, queijos e presuntos. Pode entrar em qualquer uma, são todas ótimas. Para saborear uma bisteca fiorentina, em vez de ir para Firenze, eu e meu marido preferimos pegar essa estradinha até Panzano porque adoramos o restaurante de Dario Cecchini. Ele é criador de gado e conhecido, claro, como "o melhor açougueiro do mundo". A gente ria desses exageros, mas o Rudge me disse que agora o Dario saiu até no The New York Times... E por que não comer a famosa bisteca em Firenze, capital da Toscana? Porque lá você come mal e paga caro. No verão, lota, não é lugar para se hospedar, e sim para conhecer arte, visitar o Duomo (catedral local) e as obras dos grandes mestres. Berço da Renascença, a cidade é cenário para as obras de Botticelli, entre outros. Mas eu prefiro os vilarejos medievais, sem tanto business e por isso mais autênticos.

Amor e piquenique

Uma cena típica das minhas férias: eu e meus filhos, de maiô e bicicleta, voltando da praia e parando na porta da quitanda para nos lambuzarmos com os pêssegos - o delicioso pesca di moriano. As praias da minha infância e adolescência são as mais badaladas. A praia Forte dei Marmi (forte dos mármores) tem ótimos bares e restaurantes; sonho em passar minha velhice ali. Ao sair da orla, vale descobrir os pequenos restaurantes familiares, que não constam do guia Michelin, mas a mulher está na cozinha, o marido e os filhos servindo as mesas - e de vez em quando eles brigam.  Adoro. Viareggio, porto de iates de luxo, é famosa por ser uma das raras praias de areia branca. Na temporada, as baladas fervem. Cuidado com os italianos! Eles fazem qualquer coisa para seduzir as mulheres e depois somem. Tenho vários amigas que quebraram a cara. Claro que existem exceções, mas eu dou graças a Deus de ter casado com um brasileiro.

Conheci Rudge aos 22 anos e foi amor à primeira vista. Ele conquistou toda a família, aprendeu a língua e também as receitas da minha mãe e hoje é mais italiano do que eu! Estamos casados há 21 anos. Na primeira vez que viajamos juntos para a Itália, ele ainda era meu namorado e fomos fazer piquenique em cima das muralhas históricas de Lucca. Dá para ir a pé ou de bicicleta alugada, esse é um de meus programas prediletos. Compramos queijos e presuntos no mercado, uma garrafa de vinho e estendemos a toalha na grama. Também o levei para a Trilha do Amor, rodeada pelo mar azul de Cinqueterre. Fica na Ligúria, mas até lá é só uma hora de carro ou de trem. As "cinco terras" na verdade são cinco praias de pedra perdidas no tempo, em aldeias de pescadores. No verão, não se acha uma pedra para colocar a toalha! A focaccia, típico sanduíche italiano, é uma ótima pedida para quem está na praia. Minha focacceria predileta é a Il Nicchio, na marina di Pietrasanta. Nunca resisto à sobremesa crema di nutella, servida com creme de baunilha quente por cima. Uma bomba de calorias, mas vale a pena. Pietrasanta foi a cidade adotada por Botero (artista colombiano, célebre por retratar gordinhos). Tem obras dele por todo lado e vernissages incríveis de artistas contemporâneos. Estive lá com vários amigos, recentemente, na Enoteca Marcucci. A adega é uma viagem, come-se divinamente e os preços são ótimos. Todos esses lugares são muito próximos de Lucca, você vai e volta no mesmo dia. Mas reserve dois dias para a Ilha de Elba. O acesso é por balsa, da cidade de Piombino. O mercado local é uma festa para os olhos, e a praia é a mais linda da Toscana, cenário um verão inesquecível em 1984, quando participei de um acampamento estudantil e me apaixonei por um jogador de futebol italiano (com quem terminei tudo no dia em que conheci o Rudge).

Montanhas e praças em festa

As cidades medievais incrustadas nas montanhas são comoventes. Um lugar a que volto sempre é Bolgheri, com uns 300 habitantes. O caminho, cheio de ciprestes, é uma poesia com vista para os vinhedos. Do lugar onde nasci, Bagni di Lucca, sai a estradinha com destino a Barga. Super florida e cheia de cafés, reina no topo da montanha. Em agosto, lá e em outras cidadezinhas são realizadas as sagras, festas para arrecadar fundos para a igreja. As donas de casa fazem bruschetta, massas, doces e vinhos caseiros e doam para a paróquia, que arma as barracas de comida na praça. Por 10 euros, participa-se de um banquete público. Vou sempre com meus filhos. Em julho, subimos de bondinho para Certaldo in Alto, a cidade do escritor Giovanni Boccaccio, onde todos os domingos tem a Mercantia, um festival de arte de rua. Minha casa fica em Lucca, onde vivem minha mãe e minha família. Tenho um retrato com todo mundo em volta da mesa, de quando meu pai ainda era vivo. Ele morreu do coração e descobri que eu também tenho um problema cardíaco - e que isso é muito comum em imigrantes. Será que é porque nosso coração é dividido entre dois países? Em Lucca, também fica o hotel La Romea, dos meus primos - um palazzo medieval restaurado no centro histórico.  As muralhas são a referência - chamamos de Lucca dentro e Lucca fora. Em Lucca fora, os tios da atriz Lilia Cabral são os donos da Enoteca Giovanni, perfeita para quem quer conhecer a típica comida italiana. Tudo começa com bruschetta e espumantes e depois vêm a pasta, a carne, os doces, o sorvete, a grappa. Quem cozinha é a senhora Giovanni. Ela deve ter uns 70 anos, chique, enérgica. Passo todas as minhas férias em Lucca e, aos 45 anos, ainda não consegui me livrar de um comportamento da infância. Toda vez, na hora de me despedir dela, eu choro.



(texto publicado na revista Claudia nº 2 - ano 51 - fevereiro de 2012)




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