Por décadas as Avós da Praça de Maio têm buscado seus netos desaparecidos na ditadura. Esta semana, a líder da associação argentina, Estela de Carlotto, enfim, encontrou o seu
"Há dez mundiais estamos te procurando", disse Lionel Messi, 27 anos, jogador da seleção argentina, em uma propaganda em vídeo para a campanha das Avós da Praça de Maio, exibida pouco antes da Copa do Mundo, este ano. Pois nesta quarta-feira (6), ele postou em seu Facebook: "Feliz e animado com a aparição do neto de Estela de Carlotto. Temos de continuar a luta, pois existem muitos mais." Messi participar de uma campanha nacional assim tem explicação: trata-se simplesmente da descoberta do neto da líder da associação civil que busca as crianças sequestradas e desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Ele é Guido Carlotto, criado por uma outra família sob o nome de Ignacio Hurban, 36, um músico de jazz que vive em Olavarría, a 350 quilômetros ao sudoeste de Buenos Aires. Ignacio se submeteu voluntariamente a um teste de DNA há cerca de um mês e pôs fim à procura de Estela. Na sexta-feira (8), ele, feliz, postou uma foto com a avó de 84 em seu Twitter, com a a mensagem: "Obrigado, muito obrigado". A história fez a Argentina chorar de alegria.
Da mais profunda treva até este momento de luz aconteceram dez Copas do Mundo, como atestou Messi. Em 26 de junho de 1978, um dia depois de a Argentina vencer seu primeiro Mundial, nascia no cativeiro o filho de Laura Carlotto e Walmir Montoya, dois militantes montoneros sequestrados e assassinados pelo exército. Os militares sequestraram o bebê - assim como fizeram com outros 500 - e os afastaram de suas famílias, para que ninguém conseguisse identificá-los. Era um plano premeditado, uma espécie de "limpeza ideológica" para tirar as crianças da influência de quem havia "criado subversivos". Nesse caso específico de Guido, o bebê foi cair nas mãos de um casal de camponeses humildes, na Província de Buenos Aires. Ele foi registrado como filho próprio, Ignacio. A suspeita é que o menino tenha sido entregue por militares primeiro a um ultra católico, dono de terras em Olavarría, a 500 quilômetros da capital. Os pais adotivos de Ignacio trabalhavam nesta fazenda.
Entre aquele momento de escuridão e a luz de hoje, muitas coisas aconteceram. Uma das mais importantes para a humanidade e para as Avós foi a publicação da sequência quase completa do genoma humano, em 2001. Até então, as Avós já haviam recuperado 70 netos, trabalhando serena e exaustivamente, levantando fotos, datas e informações. A partir dos anos 1980, com o avanço na identificação do DNA e participação das Avós nos estudos, passos significativos foram dados na busca dos desaparecidos.
Vários documentários e um longa-metragem contam a vida e a luta serena de Estela pela recuperação dos filhos de desaparecidos e assassinados na ditadura, nascidos em cativeiro. Os realizadores do documentário Eu, Estela contam que, quando estavam filmando em sua casa, entenderam que essa mulher, sempre amável e bem arrumada, não baixaria nunca suas defesas nem permitiria que pessoas entrassem em seu mundo mais sensível e pessoal. Até que Estela abriu um armário e tirou dele um envelope amarelo com uma série de fotografias, que foi colocando sobre a mesa, como quem distribui um jogo de cartas. Em um dos textos, na época, falava imaginativamente para seu neto, ainda não encontrado: "Esta é sua mamãe. Estes são seus primos, que têm algo de você. Estamos e vivemos sua identidade. Esta é sua história e em breve você vai poder conhecê-la. Tomara que seja logo. Quero contá-la a você. Você vai rir e chorar, mas é sua história. Pois é a nossa também". Quando se completou 18 anos do nascimento de seu neto, Estela escreveu: "Em seu coração e em sua mente estão todas as canções que Laura, na solidão da prisão, sussurrou para você quando se mexia em sua barriga (...) E descobrirá que você gosta de ópera, de música clássica e de jazz (quanta velharia!), como seus avós. Estou te buscando e te espero. Com muito, sua avó, Estela".
"Éramos muito inocentes"
Estela, mais jovem, se tornou professora em uma escolinha de Coronel Brandsen, a 42 quilômetros de sua casa. Viajava em La Chanchita, um trenzinho laranja e redondo que demorava uma eternidade. "Vir de uma cidade como La Plata e chegar a um bairro onde havia tanta pobreza e ainda ter vontade de ensinar... Éramos duas professoras para quatro turmas. Era metade mãe e metade professora", explicou a avó." Não foi uma professora a mais. Foi a 'Senhorita Estela', a pessoa que me formou como garoto e homem", explicou José Echeverri, hoje professor. Nos anos 1970, La Plata era uma cidade de estudantes e trabalhadores, onde diariamente desapareciam pessoas. "Vivíamos com a incerteza de saber quando ia acontecer conosco", relembra ela. Em 1º de agosto de 1977, Laura pediu a caminhonete de seu pai, Guido. Ele saiu para levar-lhe a caminhonete e não voltou. Laura se deu conta de que estavam atrás dela. Em 15 de agosto, Guido Carlotto foi liberado. Pesava 15 quilos a menos. Falou oito horas seguidas, contando sobre a tortura e toda a barbárie pela qual havia passado. Estela confessa que o olhavam com desconfiança. Custava a crer em tanta crueldade. Laura então foi para Buenos Aires com seu companheiro, a quem Guido havia visto uma única vez, mas Estela não conhecia. Durante um tempo, Laura conversou com o pai por telefone. Quando parou de ligar, começaram a buscá-la. "Éramos muito inocentes. Primeiro, fui atrás do arcebispo de La Plata, monsenhor Plaza, que entregava mais que ajudava, por mais que me custe dizer isso como católica. Depois, políticos, sindicalistas, militares."
Neto número 114
Dentro do complexo mecanismo do Estado militar, alguns dos detidos eram libertados e transmitiam a notícia de que outros sequestrados estavam vivos. Uma pessoa liberada que havia compartilhado a cela com Laura, contou aos Carlottos que sua filha pedia que estivessem atentos ao nascimento de seu bebê, que o buscassem na Casa Cuna (centro social) e que era um menino e se chamaria Guido. Logo souberam que havia nascido, em 26 de junho - mas na Casa Cuna, nem em nenhuma outra entidade, encontraram o menino. Laura havia sido sequestrada em 26 de novembro de 1977 em Buenos Aires. Tinha 21 anos e estava grávida de dois meses e meio. Logo após o parto, foi morta e seu corpo entregue a seus pais pela polícia de Buenos Aires. Estela seguiu buscando seu neto, crente que estava sozinha - mas encontrou outras avós que já começavam a se organizar. Iam todas as quintas-feiras à Praça de Maio e se reuniam sempre. "Éramos como formigas em uma confeitaria. Foi um tempo de ilusões, de ir às casas de cuna, aos juízes, conversávamos com gente que nos olhava com desprezo ou com pena, mas nunca com humanidade", explicou. Estela afirma que se tivesse se entregado ao desespero, sem construir nada, não estaria viva. Buscar o neto foi um ato de vida, de desafio e de contestação.
No último 5 de agosto, Estela chegou ao juizado de Buenos Aires vestindo uma saia escocesa, suéter laranja e uma bolsa marrom. Sua ilusão era nesse dia receber a notícia de que haviam identificado o neto número 114. Faltam outros 400. Mas a ilusão se transformou em realidade. "É seu neto", disse a juíza. E o país chorou de alegria. Já o neto de Estela descobriu há muito pouco tempo que não era filho biológico de Juana e Clemente Hurbán, quando alguém teve coragem de contar a ele sobre a possibilidade, pouco depois da morte do dono da fazenda onde se criou. Foram checadas suas amostras de sangue com milhares de vítimas da ditadura e se chegou à inequívoca conclusão de que era neto de Estela e Guido Carlotto e de Hortensia e Bergel Montoya. Os avôs Guido e Bergel não vão conhecer seu neto, o primeiro morreu de causas naturais e o segundo foi morto e enterrado como NN (não identificado) em 27 de dezembro de 1977. Em 2009, seus restos foram reconhecidos e suas cinzas espalhadas junto às de seu pai.
Na quinta-feira (7), Estela ouviu seu neto despedir-se após o primeiro encontro: ¡Chau, Abu!" (tchau, vovó), emocionando a lutadora mulher que correu o mundo em busca de netos desaparecidos.
(texto publicado na revista Contigo nº 2030 - 14 de agosto de 2014)
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