terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A armadilha do feminismo - Denis Russo Burgierman


Cinquenta anos atrás, era comum ouvir que as mulheres fossem menos capazes do que os homens de trabalhar, de pensar, de fazer escolhas. Hoje, todo mundo acha natural que uma mulher seja presidente de empresa, ou da República. A desigualdade entre gêneros continua existindo, óbvio, mas as conquistas do feminismo merecem ser celebradas.

Porém, como sempre acontece com grandes transformações sociais, no meio de um monte de coisa positiva, houve pelo menos uma grande consequência negativa. Enquanto as mulheres do mundo todo conquistavam espaços antes dominados apenas pelos homens, aquilo que era eminentemente feminino parece ter perdido boa parte de seu valor. Celebramos a chegada delas ao topo das hierarquias, à liderança da política, ao comando da economia. E aí, de repente, parece que ninguém mais valoriza os papéis femininos tradicionais.

O mais evidente deles é a maternidade, claro. Tenho pensado muito nisso desde que minha filhota Aurora nasceu, dez meses atrás. Claro que ela chegou mudando a vida de todo mundo, a minha inclusive. Mas, para a Joana, minha esposa, foi uma revolução. É como se ela tivesse feito um doutorado - e tivesse se transformado na maior especialista do mundo inteiro em Aurora. Agora, enquanto nossa filha balbucia suas primeiras palavras, Joana vai se tornando uma linguista: uma das únicas duas pessoas do planeta com fluência em "aurorês". Criar uma nova pessoa é um trabalho profundo, dedicado, monumental - e também não-remunerado. Mas parece que, nesses tempos em que realização pessoal virou sinônimo de realização profissional, ninguém mais acha que isso seja importante.

Todo mundo - homens, mulheres, até bebês - tem uma vida cheia de dificuldades, de desafios e de conquistas. É como diz o poeta: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Não existe uma única régua para medir sucesso - cada um tem a sua. Ganhar uma eleição presidencial é com certeza uma glória, mas ficar de pé pela primeira vez também é. E criar uma boa pessoa para o mundo, então?

Óbvio que não estou dizendo aqui que as conquistas do feminismo devessem ser revertidas para que as mulheres pudessem todas voltar a se realizar apenas como mães - isso seria ridículo. Mas as conquistas do feminismo não podem se transformar numa armadilha: uma obrigação a mais, uma nova fonte de culpa. Talvez tenha chegado a hora de aceitarmos que cada um tem o direito de buscar sua própria realização onde quiser.




(texto publicado na revista Bem Simples nº 145 - junho de 2014)




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