Para discutir como a cobertura jornalística tratou a questão da crise hídrica que afeta a região Sudeste do Brasil, mais especificamente a capital paulista, o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e o Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP (Procam-IEE/USP) promoveram, em parceria com o Senac-SP e o Data4Good, um debate que teve a presença de acadêmicos e membros da sociedade civil. O objetivo da conversa foi identificar os principais atores envolvidos, compreender como a veiculação de notícias com fontes erradas, incompletas ou tendenciosas pode comprometer o entendimento da questão pela sociedade e propor soluções para o problema.
Foram coletadas pelo IDS e pelo Procam, entre 31 de janeiro e 15 de outubro, informações de 196 matérias dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo. Os dados mostraram que o governo aparece como personagem central da crise, com 77% das menções, enquanto a estiagem, considerada o motivo principal da falta de água, em 72% de citações. Com base nos dados, os integrantes da mesa estabeleceram quatro diretrizes para nortear o debate.
- Discutir a plausibilidade das causas apontadas pela mídia;
- Elaborar um roteiro para executar ações em curto,médio e longo prazo;
- Identificar as responsabilidades;
- Criar estratégias para mobilizar a população.
Causas
Os especialistas foram unânimes ao mencionar a questão da governança dos recursos hídricos. Stela Goldenstein, ambientalista e diretora executiva da ONG Águas Claras do Rio Pinheiros, afirma que o uso eficiente e sustentável da água depende da gestão correta de informações, de um modelo de governança de mananciais e da definição do papel dos municípios para o equilíbrio entre oferta e demanda da água. Para ela, centralizar o debate da crise apenas na maior concessionária de águas do Estado de São Paulo, a Sabesp, é uma visão parcial, pois o artigo 33 da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) define claramente as atribuições de integração dos órgãos de gestão da água, como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, as agência reguladoras, os comitês de bacias hidrográficas, entre outros.
Stela atentou também para o modelo de cobrança do uso da água. A Lei 9.443/97 estabelece que os valores arrecadados com a cobrança devem ser empregados na própria bacia hidrográfica para custear estudos técnicos e manter as entidades ligadas ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Contudo, não é o que acontece, pois os órgãos ainda não possuem autonomia técnica e financeira para administrar as áreas que deveriam. A cobrança pelo uso também deveria considerar o valor gasto na preservação das áreas produtoras (nascentes).
Sem árvores, sem água
O desmatamento, mencionado em apenas 3% das matérias analisadas, pode ser considerado o fator-chave da crise hídrica. De acordo com os estudos feitos por Lucia Souza e Silva, arquiteta e urbanista ligada ao Procam, o modelo de crescimento da cidade de São Paulo precisa ser urgentemente repensado. Antes ocupadas por moradias de baixa renda, as áreas próximas aos reservatórios Cantareira, Billings e Guarapiranga, que são protegidas pela Lei 12.651/14 (Código Florestal), têm sido degradadas pela construção de grandes empreendimentos de alto padrão.
O resultado do estudo de pós-graduação de Lucia Souza é alarmante. Em 20 anos, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) perdeu 380 km² de vegetação arbórea. Dos seis municípios metropolitanos com maior nível de degradação florestal, cinco deles estão inseridos nos sistemas produtores de água, como o Cantareira (São Paulo e Mairiporã); o Alto Tietê (Mogi das Cruzes e Suzano); e o Alto Cotia (Cotia). Para piorar, 62% da vegetação removida na RMSP aconteceu dentro das regiões de proteção dos mananciais. Isso prova que o desmatamento nessas áreas afeta diretamente a oferta de água mesmo em regiões distantes.
Acesso à informação
Glauco Kimura, coordenador do “Programa Água para a Vida”, da WWF-Brasil, alega que a crise da água é também um problema de falta de informação. Ele considera fundamental investir em campanhas e conscientização, como tem ocorrido na Califórnia, em que o investimento pesado em campanhas educativas, até mesmo no horário nobre da TV tem dado resultados para conter a situação de calamidade no abastecimento.
Ele menciona também a importância do relatório O Futuro Climático da Amazônia, recentemente divulgado por Antonio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Entre outros aspectos importantes, como o ritmo acelerado de desmatamento da floresta amazônica, o especialista mostra detalhadamente o papel da cobertura vegetal na geração de chuvas na região centro-sul do país, ideia essa ilustrada no conceito dos “rios voadores”. O estudo explica também como o desmatamento está afetando essa dinâmica climática.
Segundo Kimura, esse tipo de informação é essencial para o cidadão comum compreender que a árvore não só gera sombra e frutos e um ar mais puro, mas também contribui para a geração de água. O especialista enfatizou a importância do papel da governança, em que a responsabilidade entre governos, cidadãos e empresas cria um diálogo e permite a implementação das leis que já existem, ou seja, faz acontecer o que já está no papel de forma integrada.
Os estudos feitos pelo IDS e pelo Procam também analisaram as soluções propostas pelos veículos de notícias. Não causou espanto o fato de que 46% das manchetes deram preferência às mais urgentes, como racionamento, utilização de reserva técnica (volume morto), captação de outras fontes etc. Medidas de longo prazo, como redução de perdas na rede, planejamento dos reservatórios e controle de desmatamento ficaram com 7,9%, 7,9% e 3,5%, respectivamente. Dessas alternativas, tem ganhado destaque na mídia a possibilidade de captação de águas subterrâneas para resolver os problemas de falta de água na RMSP.
Não há milagre
Para José Luiz Albuquerque, hidrogeólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), a utilização desse recurso envolve vários fatores, desde a não operacionalização de um sistema de infraestrutura implantado há vinte anos e que oferece uma série de mecanismos possíveis, até a falta de articulação da sociedade para lidar com a crise. Para o especialista, o governo abriu mão do seu papel de mobilizador dos atores sociais e entidades que lidam com a questão das águas, como os comitês de bacias hidrográficas. A desinformação nesse momento de crise não permite à população compreender a gravidade do problema.
Com isso, surge o mito de que as águas subterrâneas podem resolver o problema de falta de água. O uso seguro é possível e depende do conhecimento, mas para se extrair essa água, é importante que a área esteja em boas condições ambientais e não apresente contaminações. Além disso, o bombeamento deve ser feito com cuidado. A velocidade que o ser humano retira a água geralmente não é a mesma que a natureza consegue repor. A grande diferença entre o volume contido nos subsolos e o da superfície é que no subsolo há um volume tridimensional que pode ser explorado de forma estratégica. O evento, realizado no dia 27 de novembro na Universidade de São Paulo, teve como como finalidade a elaboraração de um documento consolidado com soluções para a crise que será apresentado em uma linguagem acessível para a população.
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