terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A discreta gordura do fígado - Cristina Nabuco


Nem culote nem pneuzinho. A gordura mais terrível é a que sobrecarrega o órgão. Ela inflama e destrói células, eleva o risco de câncer, pode ser fatal. Não dá sinais e prejudica até quem está longe de ser obeso

A mulher vai ao médico para perder uns quilinhos e reconquistar o espelho. Não apresenta nenhum sintoma nem está muito gorda. Tem barriguinha saliente e suas roupas apertam, marcando curvas que preferia ocultar. E só. Mas ela toma um susto ao receber os resultados dos exames: colesterol um pouco alto, açúcar no sangue quase ultrapassando o limite normal, insulina elevada e, pior, fígado gorduroso. O nome técnico é esteatose hepática. Significa que há acúmulo excessivo de gordura nas células do fígado. Esse mal, cada vez mais frequente, foi destaque do Congresso Brasileiro de Hepatologia, realizado no Rio de Janeiro em outubro. Em um grupo de 25% a 50% dos atingidos, o problema evolui para uma inflamação no órgão, o que gradualmente destrói as células hepáticas, formando cicatrizes que comprometem seu funcionamento - quadro conhecido como cirrose. O tecido, que era macio e esponjoso, vai ficando rígido, o que dificulta a circulação do sangue. Nos estágios avançados, há retenção de líquidos, perda de massa muscular, sangramento intestinal, colapso hepático e morte. "Antes, a principal causa da cirrose era o consumo exagerado de álcool. Hoje, uma pessoa pode ter cirrose mesmo sem beber uma gota", explica a endocrinologista Cintia Cercato, diretora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).

Os especialistas esperam um crescimento disparado na incidência de fígado gorduroso diante da escalada da obesidade. De 2006 para 2012, o índice de obesos no país subiu de 11,4% para 17,4% e o de pessoas que ainda não chegaram lá mas já estão com sobrepeso pulou de 43% para 51%, segundo dados da Vigitel, pesquisa do Ministério da Saúde realizada nas capitais brasileiras. Outra preocupação: a doença hepática gordurosa não alcoólica pode evoluir para câncer, aumenta o risco de diabetes (por prejudicar a ação da insulina) e anda de braços dados com distúrbios que ameaçam o coração. A gordura mais lesiva para o fígado - a visceral - é justamente a que oferece maior risco de infarto de miocárdio. Ela tem ligação direta com a síndrome metabólica, transtorno em que se associam perigos para o músculo cardíaco. Entre eles, resistência à insulina, fração ruim do colesterol  (LDL) nas alturas, fração boa (HDL) baixa, triglicérides alto e hipertensão arterial. "Por se concentrar no abdome, muito próxima do fígado, a gordura pode ser drenada facilmente para lá", diz Cintia. "Também contribuem para o quadro a predisposição genética e o uso prolongado de corticoides (receitados para inflamações em várias partes do corpo) e de tamoxifeno (que ajuda a enfrentar o câncer de mama).

Em um estudo comandado pela equipe do hepatologista Edison Parise, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mais de 9 mil pessoas - que, juntas, compõem uma amostra da população em geral - foram submetidas a exames de ultrassom e quase 20% apresentavam fígado gorduroso. "Se o grupo fosse de obesos mórbidos, o índice subiria para 90%", estima o professor. Pessoas com sobrepeso tem três vezes mais probabilidade de manifestar a doença quando comparadas às de peso normal. Mas nem os magros estão imunes se tiverem barriguinha. "É gente que passou dos 30 anos, ganhou peso progressivamente, vive sob estresse, trabalha muito, tem horários irregulares para se alimentar e não encontra tempo para fazer exercícios físicos", descreve a endocrinologista Zuleika Halpern, de São Paulo. "A situação piora na menopausa, pois, com a falta de estrogênio, o colesterol tende a subir, assim como aumenta o risco de engordar e adquirir a odiada barriga de choque. E, ainda que o peso se mantenha, a distribuição de gordura corporal pode mudar, migrando dos quadris para o abdome."

Como descobrir?

Durante o exame físico, o médico pode notar um aumento do fígado. O mais comum, porém, é o quadro ser descoberto por exames complementares,  como o ultrassom do abdome, se realizados por um profissional familiarizado com a esteatose hepática. A confirmação é feita por meio de biópsia, em que se colhe, usando-se uma agulha, amostra de tecido do fígado para análise ao microscópio. Como requer anestesia e internação, o método é substituído por um novo exame de imagem, ainda não disponível na rede pública: a elastografia hepática, na qual ondas de baixa frequência são associadas ao ultrassom para estimar danos. Quanto mais rapidamente as ondas se propagam, mais endurecido está o tecido. A avaliação de duas enzimas hepáticas, AST (aspartato aminotransferase) e ALT (alanino aminotransferase), também indica a presença de inflamação. Pacientes mais vulneráveis, com mais de 45 anos, costumam ter níveis aumentados desses enzimas, além de diabetes e obesidade. Mas a doença não perdoa nem os adolescentes. Metade dos 300 pacientes de 15 a 19 anos, com excesso de peso, analisados em 2009 pelo Grupo de Estudos da Obesidade da Unifesp tinha esteatose. Em trabalhado divulgado em março deste ano, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade Emory, nos Estados Unidos, calcularam que a incidência da doença na adolescência duplicou em 20 anos.

Forças aliadas

"Para evitar lesões permanentes, é preciso corrigir os maus hábitos e reduzir o peso", alerta Zuleika Halpern. Segundo a Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fígado, perdas de 10% do peso corporal já podem trazer bons resultados. Mas o emagrecimento deve ser gradual, sob pena de sobrecarregar o fígado fragilizado. Vale restringir gorduras saturadas (carnes gordas, frituras) e não abusar dos carboidratos. Pesquisas da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, mostrou que açúcar em excesso no sangue se converte em gordura no fígado. O álcool também deve ficar fora da mesa: como é tóxico par as células hepáticas, prejudica ainda mais o órgão. Outra medida essencial é praticar exercícios físicos. "Eles estimulam a queima da gordura abdominal e melhoram a ação da insulina", diz a endocrinologista. Cientistas da Universidade de Missouri, também nos Estados Unidos, demonstraram o benefício de atividades aeróbicas regulares, como a corrida. A vitamina E é outro bom aliado. Em um artigo publicado em 2010 no New England Journal of Medicine, uma equipe da universidade americana Virginia Commonwealth observou que a inflamação resulta de estresse oxidativo (presença de lixo nas células) e que suplementação com vitamina E, famoso antioxidante, melhora o quadro.

Medicamentos contra obesidade, diabetes ou depressão (para reduzir a compulsão, que leva a pessoa a comer além da conta) podem ser úteis. Neste ano, gastroenterologistas da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, verificaram que as bactérias do intestino exercem um papel no aparecimento da esteatose. Portanto, iogurtes com lactobacilos e até antibióticos talvez auxiliem no tratamento. Já na Universidade de Duke, testes com ratinhos sugerem que 4 xícaras diárias de café ou de chá rico em cafeína - caso do chá-preto, mate e chá-verde - previnem e reduzem a gordura no fígado. Falta comprovar o efeito em humanos.

A cintura denuncia

O fígado é uma usina encarregada de processar compostos químicos. Fabrica a bílis, que dissolve gorduras, degrada toxinas, sintetiza proteínas que zelam pela coagulação do sangue e mantém uma reserva de glicose para necessidades eventuais. Mas não foi projetado para estocar muita gordura. Quando o volume excede sua capacidade de transformá-la em energia (mais de 10% do seu peso), o fígado pode aumentar e adquirir coloração amarelada. Em geral, o quadro é assintomático. Se aparecem sintomas, como fadiga, mal-estar, náusea, dor ou desconforto no lado superior direito do abdome, é provável que o órgão já esteja seriamente agredido. Assim, o melhor é buscar diagnóstico precoce. Vigie o peso e a medida da cintura - em mulheres, o desejável é até 80 centímetros; em homens, 94. Ultrapassar esses valores pode ser sinal da doença.




(texto publicado na revista Claudia nº 11 - ano 52 - novembro de 2013)








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