segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A internet e a união familiar - Walcyr Carrasco


Desembarco em Curitiba. Envio um recado à minha prima em segundo grau Myrna:

- Cheguei.

Marcamos um café. Não vejo Myrna e seus irmãos há mais de 40 anos. Sua mãe era prima da minha. Quando Myrna era pré-adolescente, a mãe, o pai e a irmã mais velha morreram num acidente de carro. Myrna e seus irmãos saíram ilesos, mas foram morar com os avós paternos. Perdemos o contato. Há alguns meses, Myrna me reencontrou pelo Facebook. Falamos muito pela web. Quando fui convidado para uma palestra em Curitiba, aproveitei para marcar o encontro pessoal. Aconteceu no apartamento de Zulma, sua irmã. Mônica, a caçula, e Leõnidas Jr. também foram. Eu tinha dúvidas, depois de tantos anos:

- Como será?

Foi maravilhoso. Não nos víamos desde crianças, mas nos entendemos como quem se conhece desde sempre. Falamos sobre como foi a vida de cada um. Myrna é corretora de imóveis. Sempre disse que, se não fosse escritor, seria corretor! Mônica tem um café teatro, seu filho é ator. Vocação familiar! Leônidas é joalheiro. Antes esculpia peças sobre encomendas. Agora, montou ele próprio uma impressora 3D, com componentes achados em lojas de eletrônica. Cria os moldes de joias a partir de fotos. Genial, na minha opinião. Lamentavelmente, acho que talento vem de sua herança paterna. Sou um asno no quesito informática.

Agora sei que tenho família em Curitiba, que nos veremos muitas vezes. Recentemente, tive notícias de outra prima, essa bem mais distante, em Cuiabá. A vida não foi tão generosa com ela. É gari. Mandei mensagem, ela não respondeu. Ainda. O fato de escrever para televisão, livros e numa revista importante assusta e afasta. É preciso tempo. Mais cedo ou mais tarde, ela ou seus filhos e sobrinhos falarão comigo, e a grande corrente familiar continuará a ganhar elos.

A internet é amiga do apocalipse, pensam alguns. Mentira, difamação, invasão de privacidade, sites para pedófilos na internet profunda. Já aconteceu: pela internet, um canibal e sua vítima se conheceram. Se entenderam, e um aceitou ser devorado pelo outro. Há aspectos pavorosos na nuvem. Mas também existem coisas belas, como a união familiar. Meus dois irmãos e eu criamos um grupo no WhatsApp. Há décadas moramos em cidades diferentes. Lembro que, antes de morrer, um dos maiores desejos de minha mãe era ter um Natal com os três filhos reunidos, pois raramente nos encontrávamos ao mesmo tempo. (E também nos revezávamos em datas significativas par que ela nunca ficasse sozinha. Ela também morava em outra cidade.) Adoro meus dois irmãos, mas nos vemos pouco. Agora, Airton montou esse grupo, Ney e eu já entramos. Para minha surpresa, descobrimos que, há uns dois anos, mando mensagens a Ney pensando se tratar da mulher dele, Bia. Gravei o nome errado. Os dois me chamaram de gagá. Mereci. Minhas sobrinhas também montaram outro grupo, onde nos divertimos todos os dias. São piadas, comentários, fofocas. Uma delícia. Por causa dessas mensagens, decidimos que, neste ano, o Natal será em minha casa. Já corri para comprar uma miniatura de roda-gigante para divertir as crianças, já que minha cada é cheia de caveiras e obras de arte contemporâneas. Nada muito infantil. Hummmmm.... talvez as crianças gostem das caveiras, pensando bem.

Neste país, formado por levas e levas de imigrantes, é comum que as famílias se dispersem. Minha mãe teve 11 irmãos vivos, todos com filhos. Primos em primeiro grau, tenho uns 80! Recentemente, Valdo me achou, também pela internet. Fui ao aniversário de 90 anos de sua mãe, minha tia Bernarda, a mais velha de todas as irmãs, e única ainda viva. Dezenas de primos e primas estavam lá, em Vinhedo, São Paulo. Atualizamos nossas vidas, foi um grande reencontro. Uma família tão grande reflete a história do país. Muitos subiram na vida, de maneira impressionante. Alguns ficaram na linha da pobreza. Um cumpre pena, outro, com quem eu brincava em criança, já passou pela cadeia duas vezes. Tudo isso é minha história, não é?

Assim como eu, conheço muita gente que redescobriu a família com a ajuda da internet. Outro dia, minha prima Myrna me enviou a última foto que todos nós, netos e bisnetos, tiramos com meus avós. Me revi garotinho, de braços cruzados. Não tinha essa foto. A internet a trouxe de volta, com tantas recordações. É a prova de que a família tem laços únicos, intangíveis, misteriosos - que são para sempre.




(texto publicado na revista Época nº 862 - 8 de dezembro de 2014)




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