domingo, 28 de dezembro de 2014

Bem-vindo à era dos homens biônicos - Jennifer Ann Thomas


A chegada ao mercado dos exoesqueletos foi ansiosamente aguardada por deficientes físicos, que podem voltar a andar com essas inovações. Mas as máquinas também são úteis a todos, por possibilitar a superação de nossos limites físicos naturais

Em 2012, o capitão da Marinha americana Derek Herrera foi atingido por tiros de terroristas do Talibã, durante uma patrulha no Afeganistão. Em consequência, perdeu o movimento das pernas. Há três meses, Herrera voltou a andar. Sua caminhada foi possível graças ao exoesqueleto ReWalk, o primeiro equipamento do tipo a ser aprovado, em junho deste ano, para uso doméstico nos Estados Unidos. Ele possibilita a paraplégicos levantar-se, andar, sentar-se e subir e descer escadas.

É um sucesso de vendas. Apesar do preço restritivo, de 69 500 dólares, não coberto por planos de saúde (restrição que deve cair no próximo ano), foram comercializadas cerca de 100 unidades, em três meses. Na semana passada, a fabricante israelense, também chamada ReWalk, anunciou que deve abrir até o fim do ano seu IPO (oferta pública inicial, no termo em inglês) na bolsa de valores americana Nasdaq. Pretende levantar ao menos 50 milhões de dólares em ações, o que fará com que a companhia valha cerca de 200 milhões de dólares. Em paralelo, empresas tradicionais, a exemplo da japonesa Honda e da americana Lockheed Martin, especialista em tecnologia militar, entram no mercado. Em 2014, os exoesqueletos saem dos centros de pesquisas acadêmicas e militares para entrar no cotidiano da sociedade. São inovações capazes de recuperar a capacidade motora de deficientes, mas também de possibilitar a uma pessoa plenamente apta ultrapassar limites físicos naturais.

Para os 65 milhões de cadeirantes do mundo, a chegada ao mercado do primeiro exoesqueleto representa o início da aposentadoria da cadeira de rodas. E, evidentemente, a esperança de voltar a andar. "As pernas mecânicas se comportam da forma como era quando eu andava", disse, emocionado, John Dawson-Ellis, que perdeu o movimento dos membros inferiores em 2009, em um acidente de moto, e foi um dos primeiros a testar o ReWalk, ainda em clínicas.

Até agora, paraplégicos e tetraplégicos dependiam de uma tecnologia desenvolvida há mais de 2 000 anos: a cadeira de rodas. Há registros de versões primitivas em desenhos em vasos gregos que datam de 500 a.C. Em 1595, o rei Filipe II, da Espanha, ficou preso a uma delas depois de desenvolver gota, doença inflamatória que causa dores extremas nas articulações. No século XX, as cadeiras de rodas foram modernizadas, com modelos motorizados e dobráveis, e até hoje essa tecnologia é a mais utilizada por paraplégicos e tetraplégicos. Isso está prestes a mudar.

O termo exoesqueleto significa, literalmente, esqueleto exterior. A inovação é inspirada na natureza. Animais como grilos, tartarugas e aranhas possuem versões biológicas. O primeiro equipamento artificial, movimentado a gás, data de 1890 e foi fabricado por um engenheiro russo. Custou uma fortuna para ser desenvolvido, e só podia ser utilizado por pessoas sem deficiências.

As pesquisas ficaram praticamente estagnadas até 1965, quando a General Electric criou o primeiro exoesqueleto com funções práticas, o Hardiman, para o Exército americano. A proposta não era a utilização por deficientes, mas sim o aprimoramento das capacidades físicas de soldados. Os braços das vestes robóticas levantavam 700 quilos de carga. O problema é que a General Electric não conseguiu habilitar o Hardiman para ser contrrolado pelo corpo humano. Os complexos comandos tinham de vir de computadores, e era preciso ter noções de programação para executá-los.

Nas últimas cinco décadas, foram três os empecilhos para a popularização: o preço das vestes, de dezenas de milhões de dólares; a dificuldade de controlá-las; e a necessidade de baterias imensas para energizá-las. Era preciso investir muito dinheiro para avançar. Em 2001, o governo americano, incomodado com a onda terrorista da Al Qaeda, investiu 50 milhões de dólares em um plano para criar vestes militares que simulassem qualquer movimento humano, alimentadas por baterias simples. A Lockheed Martin criou um protótipo que permitia que um soldado carregasse 91 quilos, sem o uso de sua força, por distâncias de até 20 quilômetros, o limite da bateria do exoesqueleto. Agora, acaba de ser apresentada uma versão comercial. Trabalhadores braçais, como os da construção civil,  têm a fadiga muscular reduzida em até 300%, o que deve aumentar sua produtividade em 27 vezes.

Estudos do uso de exoesqueletos por deficientes físicos correram em paralelo às aplicações militares. No início dos anos 2000, um dos maiores numes dessa área foi o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Ele avançou em suas pesquisas ao conseguir recriar no cérebro, com o apoio de próteses, a sensação cerebral do toque. Nicolelis, porém, decepcionou seus pares em 12 de junho deste ano, ao apresentar um exoesqueleto considerado ultrapassado (até por ele mesmo, há dois anos), na abertura da Copa do Mundo no Brasil. O neurocientista prometia fazer um paraplégico comandar a máquina com estímulos de implantes neurais, o que não conseguiu realizar. A meta não foi alcançada por ele, mas outros grupos de cientistas, como um da Universidade Brown, obtiveram êxito em 2012.

Para muitos pesquisadores, a melhor solução para ajudar os deficientes não é um exoesqueleto completo, mas sim a recriação de partes do corpo, extensões mecânicas, a exemplo de olhos, ouvidos, braços e pernas biônicos. É o caso de Hugh Herr, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o MIT), que comercializa, por sua empresa, a BiOM, próteses desenhadas de acordo com a necessidade do usuário. Para si mesmo, deficiente desde a adolescência, fabricou pernas mecãnicas de modo a poder praticar seu esporte favorito, o alpinista. No início deste ano, Herr apresentou uma versão que recuperou os movimentos fluídos de uma dançarina que havia perdido uma das pernas, depois de ser atingida por uma das duas bombas do atentado na Maratona de Boston de 2013, no qual terroristas mataram três pessoas e feriram 264.

Diz Herr: "É inadmissível que, como seres pensantes e criadores, aceitemos deficiências físicas ou mesmo limitações impostas pela natureza, quando podemos enfrentar esses obstáculos com nossa tecnologia". Tecnologia que se mostra cada vez mais acessível. Foi para provar isso que o hacker americano James Hobson exibiu, na semana passada, um exoesqueleto que fabricou em casa, ao custo de poucos milhares de dólares. Com sua roupa robótica, alimentada por uma bateria similar à de um carro e com design inspirado no herói Homem de Ferro, ergueu halteres de 80 quilos, sem esforço.




(texto publicado na revista Veja edição 2390 - ano 47 - nº 37 - 10 de setembro de 2014)






Nenhum comentário:

Postar um comentário