terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Agora é "afundou, afogou" - Nathalia Watkins


Os governos europeus não vão mais resgatar náufragos de navios lotados de imigrantes africanos que, comumente, afundam durante a travessia do Mediterrâneo

Nos últimos dez meses, mais de 3300 pessoas morreram tentando atravessar o Mar Mediterrâneo para chegar à Europa. O número de vítimas é mais do que o dobro do registrado em 2013. Na segunda-feira, 3, um barco afundou na costa da Turquia, com cerca de quarenta afegãos e sírios, incluindo crianças. A embarcação improvisada estava superlotada, como as demais que fazem percursos similares. Não há como não se comover com a desesperança que leva milhares de cidadãos da África e do Oriente Médio a se arriscar em travessias precárias. Apesar disso, os países europeus estão reduzindo as operações de resgate. No mês passado, a Inglaterra decidiu que não vai mais apoiar ações de busca e salvamento. O governo acredita que o principal efeito dessa ajuda é encorajar mais imigrantes a tentar a viagem clandestina. A principal operação italiana, a Mare Nostrum, foi suspensa na semana passada.

A justificativa inglesa tem na Itália seu melhor argumento. Desde outubro de 2013, quando dois naufrágios mataram 400 imigrantes, a Itália investiu 11,4 milhões de dólares por mês em salvamentos com mais de trinta barcos, submarinos e helicópteros. Como resultado, o número de imigrantes mais que dobrou. A tese de que as operações de resgate estimulam as travessias clandestinas não é compartilhada por alguns especialistas. "Os imigrantes e refugiados estão desesperados e determinados a completar o trajeto, independentemente dessas medidas", diz Ryan Schroeder, da Organização Internacional para a Migração, baseada em Genebra. Nem requer ações restritivas, como a construção de cercas e muros, têm tido muito efeito. A explicação para isso é que os motivos que levam as pessoas a aceitar os riscos para chegar à Europa são mais fortes do que o medo de morrer no caminho. Os imigrantes do Oriente Médio fogem dos efeitos da guerra civil na Síria e da falta de perspectiva nos campos de refugiados dos países vizinhos. Os africanos tentam escapar da miséria e de lutas tribais.

Há dois meses, um barco em que viajavam 500 refugiados na rota do Egito para Malta foi afundado propositalmente pelos traficantes de pessoas apenas porque alguns passageiros se recusaram a trocar a embarcação maior por uma menor mais frágil, para percorrer o trecho final do percurso. "Quanto mais difícil fica chegar ao destino, mais cara e perigosa se torna a viagem para os refugiados", diz a socióloga inglesa Bridget Anderson, especialista em migração da Universidade de Oxford. Atualmente, os principais portos de saída estão na Líbia, onde o vácuo de poder após a queda do ditador Muamar Kadafi facilita a atuação dos traficantes. Ao chegarem lá, muitos migrantes são sequestrados, torturados e achacados. Os que escapam desse destino e conseguem pagar pela viagem são amontados em barcos de pesca que levam entre 400 e 700 pessoas ou em botes de borracha com até 150 passageiros. O preço para ser traficado para a Europa é determinado pela nacionalidade do migrante. Na Líbia, um cidadão da África Subsaariana paga entre 1000 e 1500 reais. Para os sírios, o valor é o dobro.

A omissão europeia levanta o dilema moral da responsabilidade sobre os migrantes. Historicamente, os países abriram ou fecharam suas fronteiras dependendo de suas necessidades econômicas. Foi assim nos Estados Unidos e no Brasil. As barbáries cometidas nas duas guerras mundiais fizeram com que valores como a solidariedade entre os povos se fortalecessem. "O compromisso de todos os Estados civilizados é o respeito à humanidade dentro de suas fronteiras, daí a tradição de conceder asilo a quem vem de lugares onde isso não ocorre", diz o filósofo Roberto Romano. A Europa construiu, a partir de então, a imagem de oásis dos direitos humanos e tornou-se o principal destino de quem é perseguido em seu país. A chegada sem controle de milhares de migrantes, o custo elevado para recebê-los e o alto nível europeu de desemprego, contudo, mudaram o peso desses valores. "A restrição europeia à imigração era inevitável, pois o Estado de bem-estar social está esgotado. Com isso, fica difícil manter a imagem de defensora dos direitos humanos", diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, da Faap. As boas intenções estão afundando no mar de problemas que circundam a Europa.



(texto publicado na revista Veja edição 2399 - ano 47 - nº 46 - 12 de novembro de 2014)




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