O desenvolvimento em laboratório de um modelo da doença pode contribuir para a fabricação de remédios destinados a prevenir o distúrbio, a principal causa de demência a partir dos 60 anos
Poucas doenças desafiam a medicina por tanto tempo quanto o Alzheimer, descrito pela primeira vez em 1906. Apesar dos avanços dos exames de imagem e do aprofundamento dos conhecimentos em neuroquímica, o diagnóstico ainda é feito por exclusão, os remédios são paliativos e os fatores de risco permanecem obscuros. Quando identificado numa pessoa, o Alzheimer já deu seus primeiros sinais. No início, tende a ser confundido com o processo natural de envelhecimento - confusões de memória, alterações sutis de comportamento e dificuldade de expressão. Conforme avança, mais e mais neurônios morrem, apagando datas, nomes, rostos e lembranças. No fim, o doente está alienado do mundo e de si próprio. Poucas doenças são tão cruéis quanto o Alzheimer. Recentemente, pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, deram um enorme passo rumo a uma maior compreensão do distúrbio e à elaboração de novos medicamentos. A partir de células-tronco embrionárias, eles desenvolveram em laboratório células cerebrais e injetaram nelas as mutações genéticas características da doença - o "Alzheimer in vitro". Entre seis e oito semanas depois, sob as lentes do microscópio, acompanharam a agonia e a morte dos neurônios. "Em pouco tempo, tínhamos em mãos um modelo de Alzheimer tal qual ele acontece no cérebro humano", disse a VEJA o neurologista Rudolph Tanzi, um dos coordenadores do estudo. o trabalho foi publicado na prestigiosa revista científica Nature.
A pesquisa de Harvard foi recebida com entusiasmo pelos especialistas. Será possível, agora, acompanhar passo a passo a evolução do Alzheimer. A doença surge do acúmulo exagerado de duas proteínas no cérebro. Tudo começa com a beta-amiloide. Derivada de um subproduto do metabolismo celular, ela se aloja ao redor dos neurônios. O mau funcionamento da beta-amiloide, acreditam os estudiosos, compromete a ação de outra proteína, a tau - composto que, em um organismo saudável, participa da manutenção da estrutura celular. Juntas, as duas proteínas formam placas e emaranhados de fibras que sufocam, atrofiam e matam os neurônios. No laboratório, ao interromperem a produção de beta-amiloide, os pesquisadores conseguiram suspender a síntese de tau e frear a progressão da doença. As principais linhas de pesquisa para medicamentos contra o Alzheimer estão baseadas, sobretudo, na inibição de beta-amiloide.
Até agora, só havia uma forma de fazer estudos mais detalhados do Alzheimer - com o paciente morto, a partir da dissecação de seu cérebro. Além disso, com o "Alzheimer in vitro", será possível agilizar as pesquisas para a criação de remédios. Antes, os testes eram feitos em ratos - que demoravam cerca de um ano para desenvolver o distúrbio e, tendo ficado doentes, não apresentavam as mesmas características dos humanos. Diante das dificuldades, não é de estranhar que até hoje haja apenas dois tipos de medicamento contra o Alzheimer. Ambos retardam a progressão da doença. E, mesmo assim, só funcionam por dois anos.
Embora a ciência já tenha comprovado que o acúmulo de beta-amiloide esteja na origem do Alzheimer, permanece um mistério a causa desse desequilíbrio. É certo que a doença possui um componente genético. Já foram identificados pelo menos quatro genes associados ao distúrbio. Uma anomalia no gene ApoE, envolvido no transporte de colesterol para o cérebro, é a mais comum. Cerca de 25% dos doentes de Alzheimer carregam a variante ApoE-e4. Os portadores dessa anomalia genética apresentam um risco de três a oito vezes maior de vir a desenvolver o distúrbio.
Perante uma doença tão complexa, evidentemente, o modelo criado em Harvard é uma grande conquista, mas não representa a bala de prata para o Alzheimer. "A grande revolução no tratamento virá com a descoberta de um método de diagnóstico precoce", diz o psiquiatra Wagner Gattaz, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. O acúmulo de beta-amiloide e tau no cérebro tende a começar entre três e quatro décadas antes dos primeiros sintomas, que aparecem aos 60 anos. Há dois anos, pesquisadores americanos desenvolveram um composto químico capaz de indicar, em uma tomografia, as placas de beta-amiloide no cérebro. É um extraordinário progresso, mas ainda está longe da revolução imaginada pelo psiquiatra Gattaz. "O exame de imagem é um instrumento apenas complementar ao exame clínico", diz Salvador Borges-Neto, professor de radiologia da Universidade Duke, nos Estados Unidos.
Principal causa de demência a partir dos 60 anos, o Alzheimer tornou-se mais comum com o aumento da expectativa de vida, fenômeno global. Atualmente, 44 milhões de pessoas no mundo sofrem do mal, 1,2 milhão delas no Brasil. Até 2030, o número de doentes brasileiros deve dobrar. "Hoje em dia, conseguimos prevenir e tratar uma série de doenças do envelhecimento. Mas o Alzheimer destrói qualquer perspectiva de uma velhice saudável e independente", diz o neurocirurgião Arthur Cukiert, presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia Funcional. A esperança é que o "Alzheimer in vitro" reverta essa situação e permita frear o triste trem de alheamento, lento e inexorável, de uma doença dramática.
(texto publicado na revista Veja edição 2398 - ano 47 - nº 45 - 5 de novembro de 2014)
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