quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O lado B da tecnologia - Camila Artoni


A cada dois anos um micro é substituído. O resultado é uma montanha de lixo tóxico que escapa ao controle das autoridades

Nas duas últimas décadas estivemos assistindo a uma revolução digital. O símbolo dessa era é o avanço do microchip, que se torna cada vez menor, mais rápido e mais barato. Vimos os equipamentos evoluírem exponencialmente e o setor de eletrônicos pessoais explodir. E, enquanto a mídia tem dedicado cobertura extensiva a essa onda de inovação tecnológica, pouca atenção tem sido dada àquilo que ela deixa como rastro.

Os resíduos eletrônicos, apelidados de e-lixo, englobam uma vasta gama de dispositivos. Vão dos eletrodomésticos de grande porte, como as geladeiras, máquinas de lavar e aparelhos de ar-condicionado, às peças pequenas e portáteis como celulares, lâmpadas fluorescentes e tocadores do CD ou MP3. Antes feitos para durar, os eletrônicos de consumo hoje são projetados para serem substituídos quando quebrados - e então jogados fora. Na maioria dos lares do planeta existem torradeiras que não funcionam, pilhas gastas e videogames obsoletos que estão a um passo de virar descarte.

Ainda que fosse pelo simples volume dos objetos, o crescimento desse desejo já seria um problema. Em comparação ao lixo urbano comum, o e-lixo pesa de três a quatro vezes mais, aponta a bióloga Patricia Blauth, consultora em minimização de resíduos. Mas a sucata eletrônica é um tipo de lixo especial, no pior sentido. Por colocar em risco a saúde e o ambiente, precisa de tratamento diferenciado e fiscalização eficiente. Coisas que custam muito - e podem ser muitas vezes burladas.

Esse luxo também é peculiar por outro motivo: seu ciclo de vida é curto, muito menor que a duração real da sua produtividade. Some-se a isso a falta de incentivo à reciclagem, os altos preços do desmantelamento e do tratamento dos elementos químicos envolvidos e, sobretudo, a falta de políticas públicas, e tem-se um quadro assustador: de 20 a 50 milhões de toneladas de novos resíduos eletrônicos jogados fora, anualmente, em todo o mundo, segundo informam as Nações Unidas. Nos próximos cinco anos, esse número vai triplicar.

Duas décadas atrás, também, o lixo dos países desenvolvidos era um problema com que apenas eles tinham de lidar. Agora, a questão é global. "Havia uma defasagem para as novidades chegarem aqui", explica o economista Sabetai Calderoni, autor de "Os Bilhões Perdidos no Lixo". "Hoje os lançamentos são simultâneos e existe uma febre de substituir os equipamentos assim que chega algo novo ao mercado. O que vemos é uma obsolescência programada, não casual."

A cada dois anos e meio um chip dobra de capacidade e o anterior sai de cena. Somente no Brasil são produzidas, por ano, 3 mil toneladas de celulares. Para onde vai isso  tudo? "Depende da política de cada município", explica Eduardo Castagnari, presidente da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), "mas na maioria dos casos o destino é equivocado". Supõe-se que no Brasil a maior parte dos resíduos eletrônicos tenha um fim semelhante aos resíduos urbanos, ou seja, os aterros sanitários. E essa é uma hipótese levemente otimista", diz Sebastião Roberto Soares, chefe do departamento de engenharia sanitária e ambiental da UFSC. A suposição pessimista é que os eletrônicos vão parar em lixões.

Aqui, o problema dos resíduos sólidos reside no tratamento e disposição final, e não na limpeza pública, que já atende a maior parcela da população urbana. "No caso dos eletroeletrônicos, há uma deficiência adicional pelas oportunidades de reciclagem que ainda são desperdiçadas", aponta Diógenes Del Bel, presidente da Abetre (Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos). Uma exceção é o município de Curitiba (PR) que possui um sistema de coleta para resíduos perigosos domésticos com destinação para aterro industrial.

Foras-da-lei

Conscientizar o setor e os consumidores é importante, mas sem leis pouca coisa muda. Foi somente com uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente que fabricantes, importadores e comerciantes de pilhas e baterias passaram a tomar conta do material tóxico que vendem, com multa pesada para os que fogem da norma.

Nem sempre a existência de uma lei reguladora resolve a questão. Apesar da Convenção da Basiléia, acordo que limita os resíduos perigosos às fronteiras do país que os produz, a exportação do lixo eletrônico é prática corrente. Um computador inteiro não pode ser considerado resíduo, por isso consegue furar o controle. É o caso da China, que virou depósito da sucata tóxica que vem dos Estados Unidos, do Japão e da Europa. Com exceção dos EUA, todos esses países são signatários do tratado.

Em um país assolado pela fome, a atividade tornou-se um grande mercado. As casas chinesas são o destino dos contêiners, onde vão para o desmantelamento manual. Em geral são as mães e as crianças que fazem a desmonta, sem proteção. O que tem valor comercial, como os metais preciosos usados na soldagem, é vendido. O que não tem acaba na beira de um rio, onde é queimado. Os químicos persistentes lançados ao ar, no solo e na água são extremamente tóxicos. Quando alojados no corpo das mulheres, só têm duas saídas: pelo leite ou pela placenta. Até as gerações futuras já estão em risco.

Não é apenas a saúde que lucra com a gestão adequada dos resíduos. Os cofres públicos também. Sabetai Calderoni afirma que se tratássemos corretamente todo o nosso lixo, poderíamos acabar com o déficit habitacional do país em 15 anos.

A saída para esse entrave requer uma mudança radical de atitude em relação ao produto em si, e não apenas ao lixo. "Com raras exceções, os produtos eletrônicos não são concebidos analisando o seu ciclo de vida", diz Sebastião Soares. "A partir do momento em que o produto for responsabilizado pela gestão dos resíduos, certamente o produto será projetado também assimilando condições de desmontagem, recuperação de peças e meios de valorizar as substâncias e os materiais usados."

"O segredo é tirar os metais perigosos dos aparelhos", diz Marcelo Furtado, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil. "Um exemplo são as pilhas de níquel-cádmio. Quando a Convenção de Basiléia foi aprovada, a indústria soube que não poderia exportá-las e reagiu. Daí nasceu a bateria de hidróxido de lítio." O mesmo aconteceu com as geladeiras, cujo gás refrigerante deixou de ser o CFC.

Consumidor ativo

O passo seguinte é facilitar o envolvimento do consumidor no processo. Como no caso das garrafas retornáveis, que dão desconto no preço da cerveja, computadores e celulares poderiam custear parte de um produto novo. E, sobretudo, deve haver fiscalização para que o fabricante garanta tratamento eficiente àquilo que recolhe, com metas progressivas de reciclagem em relação ao total produzido, a exemplo do que acontece na indústria de pneus (no caso das baterias recolhidas, não há esse tipo de obrigação).

No fechamento desta edição, a União Europeia votava uma diretiva obrigando as indústrias a agirem nas duas frentes: reduzindo a toxicidade de seus produtos e trabalhando em um pós-uso eficaz. A norma previa coleta até mesmo de brocas e secadores de cabelo. Essas mudanças não correm de uma hora para a outra, mas até o fim da década esperam-se resultados. "A produtividade vai aumentar, mas a toxicidade vai cair", aposta o diretor do Greenpeace. E, se quisermos reduzir o impacto ambiental de vez, os hábitos compulsivos de compra terão de mudar.




(texto publicado na revista Galileu nº 170 - setembro de 2005)








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