Com a dívida negociada e a melhora no atendimento, o maior centro de tratamento e pesquisa cardiológica do país apresenta os primeiros sintomas de que está saindo da maior crise de sua história
Em 2011, a taxa de mortalidade de transplantes em adultos no Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas (HC), possibilitava comparações com uma roleta-russa. Houve 45% de mortes em onze cirurgias cardíacas realizadas. Outros indicadores de produtividade, como consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), caíam ano a ano. A desorganização das dívidas impossibilitava o recebimento de verbas públicas para investimento e dificultava a recuperação do maior centro de tratamento e pesquisa em cardiologia do país, inaugurado em 1977 pelo cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini.
A situação chegou a um nível tão preocupante que mobilizou os médicos da instituição. Há cinco anos, cerca de 100 deles subscreveram um abaixo-assinado que questionava a transferência para lá da área de pneumologia, que antes funcionava no instituto central do HC, pois tumultuava ainda mais, segundo reclamavam, as condições problemáticas do lugar. O questionamento acabou na mesa do promotor de saúde pública Arthur Pinto Filho, que havia recebido na época uma carta da mulher de um paciente que estava na fila de transplantes do Incor solicitando a transferência do marido para a espera do Instituto Dante Pazzanese, onde, acreditava, teria melhor atendimento. Intrigado com a coincidência, ele abriu uma investigação. Ao visitar o complexo, nas proximidades da Avenida Paulista, as deficiências eram óbvias. "Vi ralos quebrados, torneiras inadequadas, alas com forro deteriorado...", enumera. O mais assustador é que essas cenas, típicas dos piores hospitais, ocorriam na instituição gratuita conhecida nacionalmente por ser uma ilha de excelência, onde poderosos como Tancredo Neves (1910-1985), Mario Covas (1930-2001) e Antonio Carlos Magalhães (1927-2007) se trataram no fim da vida.
Nos últimos tempos, felizmente, o pulso desse gigante começou a apresentar sinais de melhora em diversas frentes. "Não dá para falar em perfeição, mas os piores problemas estão, na maioria, contornados", avalia o promotor. A antes combatida área de transplantes é um dos símbolos dessa fase. O montante desses enxertos (se contabilizados tanto os feitos em adultos como em crianças) aumentou de trinta para cinquenta entre 2011 e 2013, um incremento de 67%, e a mortalidade encolheu de 34% para 20%. Para efeito de comparação, o Dante Pazzanese, referência na área, realizou 43 procedimentos, do tipo em 2013. Há outros índices bem positivos. A espera para uma operação de válvula caiu de oito para quatro meses desde 2011. O número de exames laboratoriais só cresce - de 2,3 milhões em 2007 para 3,3 milhões em 2013 -, assim como o de cirurgias - de cerca de 3 000 para 4 500 no mesmo período. Algo semelhante acontece nas áreas de ensino e pesquisa. O total de artigos científicos publicados era de 353 em 2010 e de 399 no ano passado. Os parceiros de inovação incluem a Nasa, a agência espacial americana, que participa do desenvolvimento de um monitor respiratório. No campo do estudo, o contingente de alunos de pós-graduação strictu sensu, que andava em queda, foi de 177 para 197 nos últimos quatro anos.
Os resultados têm, em boa parte, origem comum: dinheiro. Em outubro de 2013, a Fundação Zerbini, que administra os recursos do instituto, comemorou um feito aguardado desde 2007: a exclusão de uma espécie de Serasa do governo federal, graças à solução judicial de 22 pendências, muitas com prestação de contas, e renegociação de três grandes passivos. Com isso, o Ministério Público Federal retirou a recomendação para o hospital não receber mais investimentos públicos, o que inclui emendas parlamentares. "Essa crise desorganizou nosso funcionamento", diz o cirurgião Fábio Jatene, presidente do conselho diretor desde 2010. "Agora, vivemos tempos bem melhores." O passivo do Incor, que chegou a 298 milhões de reais em 2007, agora é considerado administrável, na casa dos 122 milhões. A média mensal gasta com dívidas, de 5,41 milhões há cinco anos, está hoje com 2,12 milhões.
A equação de contas é regida por José Antonio de Lima, que assumiu a liderança da Fundação Zerbini em abril de 2013. Uma das medidas de sua gestão foi a contratação de duas assessoras de relações institucionais em Brasília, que circulam pelos gabinetes mostrando as mudanças do complexo e, claro, pleiteando varbas. "Em uma das primeiras vezes em que entrei em uma comissão parlamentar, um deputado me disse: 'O Incor veio aqui roubar meu dinheiro?'. Era preciso corrigir a imagem de que as coisas não estavam bem", conta o vice-presidente da fundação, Gustavo Ribeiro. Deu certo. Em 2013, foram captados 6,1 milhões de reais em sete emendas orçamentárias propostas por políticos de partidos que vão do PT ao PSDB. Em 2014, a expectativa é que 29 emendas atraiam 11,2 milhões.
Nessa pressão e nesses números todos positivos deste momento do hospital, pesa muito o estilo obsessivo de Roberto Kalil Filho. Ele assumiu em 2011, após concurso acadêmico, o posto de professor titular da disciplina de cardiologia clínica, o que lhe possibilitou chegar à vice-presidência do conselho. Na prática, é tido pelos funcionários como um prefeito do Incor. Diretor-geral do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, médico de políticos como a presidente Dilma Rousseff e o ex-governador José Serra, o doutor apelidado de "homem-bomba", pelo jeito pilhado, não se furta a aproveitar esse bom trânsito. Em um evento público em novembro de 2012, pediu à queima-roupa ao governador Geraldo Alckmin: "Tenho onze leitos pediátricos parados por falta de equipe. Preciso de gente". Foram então cedidos recursos para a contratação de onze médicos, dezenove técnicos de enfermagem e 21 enfermeiros, elevando o número de vagas infantis de dezesseis par 27. Em ação semelhante, ele conseguiu que o governo bancasse, a 17,2 milhões de reais por ano, quarenta leitos no Hospital Beneficência Portuguesa para doentes do Incor enquanto seu pronto-socorro está em obras - em instalações provisórias,, a emergência teve perda de doze de suas 52 vagas e continua lotada. A previsão de término da reforma é 2016.
A influência sobre a iniciativa privada, em boa parte por sua posição no Sírio-Libanês, ajuda muito. Desde que assumiu, Kalil recebe com frequência presidentes de empresas farmacêuticas e de outros suprimentos. Conseguiu assim, por exemplo, a doação de 35 próteses cardíacas infantis e 32 marca-passos para realizar mutirões de atendimento e diminuir as filas. "Eles têm todo o interesse em ajudar, claro", reconhece o gestor pragmático, de personalidade incisiva, comparada frequentemente á de sua paciente Dilma. "Imagine, eu sou muito pior que ela", sentencia, aos risos. Falando em políticos, um detalhe: alguns deles continuam a fazer consultas de rotina no Incor, caso da ex-senadora Marina Silva e do senador Eduardo Suplicy. Clientes famosos costumam ser recepcionados em um espaço reservado, que os funcionários chamam de "vip".
Com a chegada de Kalil, a rotina do 5º andar, onde ficam os principais doutores do instituto, ampliou consideravelmente sua eletricidade. "Ninguém ousa ir para o banho sem levar o celular, pois sabe que não atender é bronca na certa", diz Ludhmila Hajjar,coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cardiologia. Diante do comentário, Kalil ri: "Se a ligação cai na caixa postal, é porque estão fazendo besteira sem eu ver".
De jeito oposto, fala mansa e tom cordial, Fábio Jatene também faz a linha vigilante. Instalou em frente à sua mesa uma TV de tela plana na qual assiste ao vivo cirurgias (os parâmetros de sigilo de imagem foram acordados com o Conselho Regional de Medicina). "Se há uma operação marcada e ela ainda não começou, ligo para saber quem está atrasado. É bom saberem que existe controle", ressalta ele, que deixará a presidência do conselho no fim do mandato, em outubro, e vai defender a escolha de Kalil para o posto.
A mudança de rotina do local passa pela organização das atividades. Hoje, as equipes têm meta de cirurgia. Foi criado um núcleo de gerenciamento de leitos. Isso ajudou a acabar com os "feudos" de profissionais que brigavam para manter os pacientes de sua especialidade em determinada vaga, protelando as altas. Entre as várias medidas que incrementaram os transplantes, destaca-se o deslocamento de uma enfermeira até o hospital onde está o corpo do possível doador dotada de um ecocardiógrafo portátil - as informações, lidas na hora na sede, agilizam as decisões. A bancária Antônia Danielly Bezerra dos Santos, de 25 anos, ganhou um dos enxertos em 2013. Diagnosticada durante a gravidez, dois anos antes, com miocardiopatia dilatada ("coração grande"), ela passou por diversos tratamentos, até sofrer parada cardíaca e ser colocada na fila de transplantes. Um mês depois, recebeu o novo órgão. "Era bem tratada e tinha acesso aos doutores a qualquer momento", relata.
Para o promotor Pinto Filho, mesmo que tenham cessado as reclamações de médicos sobre o local, ainda há passos a avançar. Ele não desistirá de abrir ação judicial para que o hospital deixe de destinar cerca de 20% de seu atendimento a planos de saúde. Vai ser uma briga e tanto. Apesar de os usuários de planos serem um quinto dos pacientes, eles representaram uma receita de cerca de 120 milhões de reais nos últimos doze meses, valor quase igual ao dos repasses do SUS. "Esse dinheiro é fundamental para receber bem quem mais necessita", arguementa Lima, da Fundação Zerbini. "A unidade estatal precisa dar o máximo de espaço a quem não tem uma carteirinha de plano", rebate o promotor.
Para Libânia Paes, coordenadora da especialização em gestão hospitalar da Fundação Getulio Vargas, por mais que melhore, o Incor não deve voltar ao período de glória. "O contexto no qual está inserido é ruim: uma rede de saúde pública problemática, que leva a que a demanda seja muito acima do que é possível absorver", entende. Kalil, dono do jaleco mais influente da República, reconhece que os tempos são outros. "O que buscamos é a excelência no atendimento ao público. Quero que os políticos venham para cá, mas para prestigiar nosso trabalho e trazer verbas."
Para Libânia Paes, coordenadora da especialização em gestão hospitalar da Fundação Getulio Vargas, por mais que melhore, o Incor não deve voltar ao período de glória. "O contexto no qual está inserido é ruim: uma rede de saúde pública problemática, que leva a que a demanda seja muito acima do que é possível absorver", entende. Kalil, dono do jaleco mais influente da República, reconhece que os tempos são outros. "O que buscamos é a excelência no atendimento ao público. Quero que os políticos venham para cá, mas para prestigiar nosso trabalho e trazer verbas."
(texto publicado na revista Veja São Paulo de 2 de julho de 2014)
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