quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A revolução dos baldinhos - Tadeu Meyer


Como um projeto de coleta de lixo orgânico salvou vidas, tirou jovens do caminho da violência e elevou a autoestima de toda uma comunidade

Passa das 10 da manhã e é sexta-feira, dia de coleta do lixo orgânico no bairro Monte Cristo, região continental de Florianópolis (SC). A caminhonete cedida pela prefeitura para recolher o material duas vezes por semana está meia hora atrasada. Rose Helena Oliveira Rodrigues, a Lene, 38 anos e pioneira do projeto, espera no galpão que fica na comunidade Chico Mendes, uma das nove que compõem o bairro de quase 13 mil moradores. O lugar é o abrigo da Revolução dos Baldinhos, projeto que recolhe e faz a compostagem de 15 toneladas de resíduos orgânicos por mês. Começou com 500 quilos, coletando material descartado por uma escola, uma creche e cinco famílias que aceitaram separar o lixo. Hoje faz parte da rotina do Monte Cristo, alterou o rumo da vida de alguns moradores e multiplicou o número de famílias participantes por 50 - atualmente são cerca de 250 famílias.

Enquanto a caminhonete não chega. Lene volta três anos no tempo para relembrar como tudo começou. Em outubro de 2008, duas crianças morreram por causa de uma epidemia de ratos. Convocadas pelo médico do posto de saúde, lideranças das escolas, creches e associações de moradores se juntaram para achar uma saída. Nessa época, Lene trabalhava em um programa chamado Frente Temporária de Trabalho (FTT), limpando as ruas da Chico Mendes. Nos meses do programa, ela e uma colega, Eunice Brasil, se interessaram por um jeito diferente de descartar o lixo orgânico, a compostagem. A técnica era ensinada pelo agrônomo Marcos de Abreu, o Marquito, do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), ONG que incentiva a agricultura urbana e que também foi chamada para discutir uma solução para a epidemia de ratos.

Na reunião, ficou claro que desratizar não resolveria o problema. Se tivessem o que comer nas ruas, depois de um  tempo os bichos voltariam. Era preciso combater a epidemia pela raiz, impedir que os ratos tivessem alimento à disposição, acabar com o lixo acumulado nas ruas. Depois de alguns encontros, encontraram uma solução: destinar os resíduos orgânicos para compostagem. O primeiro desafio foi convencer as pessoas a separar o lixo. Entre outubro de 2008 e fevereiro de 2009, Lene e Eunice, que depois saiu do projeto, trabalharam apenas com a educação ambiental das famílias, mostrando como o resíduo orgânico jogado fora misturado com o inorgânico podia ser reaproveitado, se fosse adequadamente separado. Das casas, o material coletado ia para um espaço em uma escola, onde foram feitas as primeiras composteiras. Depois, virava adubo, distribuído para os participantes que, sob orientação de Leni e Eunice, plantavam hortas sem uso de agrotóxicos nos pequenos lugares que sobravam nos quintais. Para famílias de baixa renda, significava também ter na mesa um tipo de alimento a que raramente teriam acesso.

Alternativa à violência

São 10h30 e nada de a caminhonete aparecer. Maicon Willian de Jesus e Ana Carolina Conceição, a Carol, chegam ao galpão e se juntam a Lene na espera. A conversa entre os três se alterna em dois assuntos. Reclamam dos habituais atrasos do pessoal da prefeitura e comentam o brutal assassinato de um jovem de 20 anos na noite anterior, na rua ao lado das quadras de esportes da comunidade. Jonatas apanhou, levou facadas e mais de 20 tiros. "Fazia tempo que isso não acontecia. A última vez foi há uns três meses", lamenta Lene. Os três tiveram relação direta ou têm familiares envolvidos no que Lene chama, apropriadamente, de "mundo de violência". O marido de Carol está preso, o filho mais velho de Lene também e Maicon passou dois anos e 11 meses cumprindo pena por tentativa de latrocínio.

Maicon reconhece que, se não tivesse entrado para a Revolução dos Baldinhos, talvez pudesse estar no lugar de Jonatas. "Eu conhecia bem ele, puxou cadeia comigo." Maicon tem 22 anos e uma filha de um ano e nove meses. Foi preso aos 17 e, na cadeia, aprendeu o rap e virou o MC Komay Maf - seu nome estilizado e com as sílabas invertidas, mais a sigla de "Mente Aberta Floripa". Solto, chegou a traficar por um tempo, mas foi convidado por lene para fazer o "Rap dos Baldinhos". Em seguida, começou a trabalhar como voluntário. Hoje é bolsista, como a esposa, Jéssica Waltrick, de 18 anos. "O projeto me resgatou do crime. Depois que comecei a trabalhar aqui, eu larguei t udo de mão. Hoje eu sou um agente comunitário, levo a paz pela comunidade." O reconhecimento dentro e fora da Chico Mendes faz Maicon sonhar, sempre pensando em mexer com a vida cultural do bairro. Promove eventos em que canta rap, adaptou um pequeno estúdio dentro da própria casa para gravar músicas de quem não pode pagar por um profissional, faz sessões de cinema para crianças e vai fundar um coral.

Às 11h15, com quase duas horas de atraso, chega a caminhonete. Ela sai para a coleta cheia de bombonas vazias, que vão se trocadas pelas cheias nos 43 Pontos de Entrega Voluntária (PEV), Lene vai junto fazer o recolhimento, Maicon, Carol, Fábio da Silva, também bolsista do projeto, e Eduardo Farias, o Palhoça, agrônomo do Cepagro, vão a pé até o terreno onde a compostagem é feita atualmente. Com o aumento do volume de resíduos orgânicos, não havia mais espaço na escola para mais composteiras. O novo espaço foi cedido pela Cohab de Santa Catarina. Fica a cerca de 2 quilômetros do galpão, fora da comunidade e próximo à Via Expressa, acesso à ponte que liga a região continental de Florianópolis à ilha.

No caminho até as composteiras, Carol reclama da Comcap. O atraso tirou duas preciosas horas que ela esperava usar para ir até uma lan house fazer pesquisas para três trabalhos de sociologia. "Acho que eu vou rodar. Hoje era o último dia para entregar." Carol tem 30 anos e está no terceiro ano do Ensino Médio. Voltou a estudar depois que entrou para a Revolução dos Baldinhos. Sonha estudar agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O estímulo vem da valorização que ganhou com o projeto. Os moradores reconhecem o trabalho dos realizadores e, como comunidade, também têm sua autoestima aumentada ao perceber que os olhares que se voltam para a Chico Mendes não veem mais apenas crimes e violência, mas uma experiência positiva. "Estranhei quando vieram pedir para separar o lixo. A gente desconfiava, mas decidimos investir. E deu certo", diz Terezinha da Conceição, de 60 anos. Ela mora na rua Nicarágua, a mais atingida pela epidemia de ratos, e vive há 25 anos na Chico Mendes. "Hoje não queremos que acabe. Se a Revolução parar, os ratos voltam", diz.

O projeto apareceu em canais de tevê locais, foi assunto de reportagens em jornais e os realizadores são constantemente convidados para falar sobre compostagem e para contar a história da Revolução dos Baldinhos - até para Itália foram, participar de um evento da organização Slow Food. Carol conta que grupos rivais que controlam o tráfico nas comunidades do bairro Monte Cristo estiveram presentes em eventos de conscientização ecológica e não houve sinal de briga - algo quase impossível de ocorrer antes. A identidade dos realizadores com o que acontece em volta é determinante. Todo o movimento nasceu e aconteceu nas ruas do bairro, planejado e executado por pessoas que vivem há décadas no lugar. Conhecem a todos e ouvem pedidos e reclamações diretamente. "É bom quando reclamam que a bombona não está no ponto de entrega. Significa que faz falta, a gente sente que faz diferença", conta Carol.

A primeira leva de bombonas foi descarregada na composteira. É quase 1 da tarde quando Marquito chega. O agrônomo do Cepagro traz uma novidade e tanto. Uma parceria com supermercados pode multiplicar o tamanho do projeto. "Agora vocês têm que decidir se querem. Vai entrar dinheiro e vocês vão gerenciar", anuncia. Se der certo, muitos bolsistas terão que ser contratados - atualmente são cinco, que recebem 500 reais por mês. A Revolução dos Baldinhos pode crescer e se consolidar como uma alternativa ao crime dentro do bairro Monte Cristo. Marquito tem 31 anos, formou-se em agronomia na UFSC há cinco, trabalhou em vários projetos de agricultura urbana, mas admite que a Revolução, que ajudou a criar e crescer, é diferente. "É uma utopia se concretizando. Ver cinco jovens, que eram envolvidos com outros movimentos, com outras perspectivas, agora trabalhando com aquilo. Parece uma grande utopia e é a realidade. Como profissional e como pessoa, é uma realização profunda."



(texto publicado na revista Vida Simples nº 114 - janeiro de 2012)






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