segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

De olho na saúde da periferia - Daniel Bergamasco


Com o recente apoio milionário de um príncipe europeu, a rede Dr. Consulta, voltada para pacientes sem plano de saúde, chega à Avenida Nove de Julho e planeja vinte endereços até 2016

Hoje, pouco mais da metade dos cerca de 12 milhões de paulistanos têm a cobertura de um plano de saúde. É um porcentual bem acima da média da população nacional (255), mas não necessariamente uma boa notícia: para os cerca de 5 milhões sem a carteirinha, a opção é o serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado ruim ou péssimo por 51% de seus usuários paulistas, segundo pesquisa Datafolha. Foi atento a essa fatia mais carente dos moradores da capital que um administrador de empresas de 38 anos, educado no colégio Santo Américo e pós-graduado em estreladas universidades americanas, montou escritório na favela de Heliópolis, a fim de criar um negócio que está atraindo o interesse de acadêmicos estrangeiros e recebeu recentemente o aporte milionário de um príncipe europeu.

Trata-se da rede Dr. Consulta, um conjunto de clínicas particulares voltadas para as classes C e D. Valor do atendimento para quase todas as 27 especialidades: 80 reais. Um hemograma sai por 10 reais e um raio X do joelho, a partir de 25 reais. Apesar dos preços baixos, o atendimento é de bom nível, a cargo de profissionais formados nas melhores universidades de medicina do país. Ao contrário do que se possa imaginar, a iniciativa não tem nada a ver com filantropia. É um negócio criado para fazer dinheiro, com metas rígidas de desempenho e controle de custos. Deve fechar 2014 com um faturamento de 6 milhões de reais. O valor é o dobro do investimento nos três anos iniciais, mas todo o lucro é reinvestido na operação - não há previsão de quando começarão as retiradas dos sócios, que focam a expansão.

A ideia para o projeto surgiu quando Thomaz Srougi estava nos Estados Unidos, na Universidade Harvard, onde estudou gestão. Chamou sua atenção na época o caso das drogarias mexicanas Farmacias Similares, que oferecem em seu anexo consultas a preços módicos. "Pensei que uma rede popular, logicamente sem esse aspecto discutível da venda casada de remédios, poderia ser lucrativa e fazer o bem para o Brasil", conta.

Em 2011, unidades foram abertas em São Mateus, na Zona Leste, e Heliópolis, na Zona Sul. Em junho deste ano, chegou o momento da expansão, com a inauguração das filiais no São Bernardo Plaza Shopping, atrás da Estação Jabaquara do metrô e, há duas semanas, na Avenida Nove de Julho, na altura da Rua Estados Unidos, com foco nos passageiros do corredor de ônibus. A meta é alcançar vinte endereços nos próximos dois anos, todos na Grande São Paulo.

Boa parte dos médicos tem vínculo com os melhores hospitais da cidade, como Sírio-Libanês ou Beneficência Portuguesa. Eles são atraídos, em especial, por dois fatores. "O principal é a oportunidade de levar qualidade de vida à periferia", discorre o cirurgião vascular Vitor Gornati, de 29 anos, formado na Universidade de São Paulo, com especialização no Hospital Israelita Albert Einstein. O outro atrativo é a remuneração: apesar dos preços baixos cobrados, o valor recebido a cada consulta é frequentemente superior ao dos repasses de planos de saúde. Varia entre 40% e 100% do total desembolsado pelo paciente, conforme alguns critérios: se a agenda não está totalmente preenchida, por exemplo, o profissional é recompensado com porcentuais maiores.

O ganho médio estimado pela empresa é de 150 reais por hroa (ou 900 reais em uma jornada de seis horas). Clínicos-gerais, por exemplo, ganham de 8 a 32 reais das operadoras de saúde a cada atendimento - e ainda precisam arcar com as despesas do consultório. No sistema criado por Srougi, há ainda prêmios em dinheiro ou na forma de subsídios para congressos vinculados ao desempenho. "Se você deseja conquistar leões, precisa oferecer carne. Quem joga banana só atrai macaco", compara Srougi. Hoje, são 103 médicos, e há duas dezenas na fila, esperando as próximas unidades - em 16 de dezembro, abre as portas a filial do Shopping Metrô Tatuapé.

O caminho inicial foi um tanto penoso até a marca atual de 8 000 consultas e 10 000 exames mensais. O endereço de São Mateus, que era menor e funcionava como "tubo de ensaio", acabou sendo fechado por falta de público depois de nove meses de funcionamento. "No começo, ninguém entendia nosso modelo de atuação", diz Srougi, que panfletava em frente a hospitais e pedia espaço a igrejas evangélicas para anunciar o serviço. Na unidade pioneira, a violência na favela de Heliópolis assustou: foram seis assaltos, durante os quais médicos chegaram a ficar rendidos sob a mira de armas de fogo. Esse é um dos motivos pelos quais a clínica, apesar de lotada, mudará para um endereço a poucos quilômetros dali, ao lado da Estação Sacomã do metrô.

A bancária Aparecida Cugliari, de 49 anos, moradora da região de Heliópolis, tornou-se paciente no ano passado. Desempregada após mais de dez anos em uma única corporação, ela se viu sem o seguro de saúde. "Ficou caro bancar um plano, então achei melhor vir aqui, onde encontro doutores dedicados", relata. Aparecida procurou um ortopedista depois de sentir dores em um dos braços. Os 80 reais (com direito a retorno), porém, não são leves para todos. "Acho pesado, mas cansei de esperar um tempão no SUS", descreve a operadora de telemarketing Franciele da Silva, de 18 anos, que passou recentemente por um oftalmologista. Um levantamento da empresa mostra que 10% da clientela considera os valores "altos", 15% os veem como "baixos" e 75% acham "adequados". A aferição apontou que em 80% dos casos a renda familiar é inferior a 2 000 reais e mostrou um surpreendente filão: 20% possuem plano de saúde privado. Há ainda gente que vem do interior ou de estados como a Bahia, por indicação de parentes.

Agendar um horário é fácil: pela internet, em uma navegação que não exige cadastro e ´é concluída em questão de segundos, ou por telefone. Com frequência, quem procura a rede pela manhã consegue horário para o período da tarde ou no dia seguinte. O atendimento é atencioso conforme a reportagem de VEJA SÃO PAULO constatou ao passar anonimamente em três filiais, em sessões de quinze a trinta minutos. A estrutura e o visual das salas de espera lembram os de um Poupatempo - as cadeiras têm assento de plástico, o ar-condicionado é uma realidade recente, não há revistas para ler e os consultórios costumam ser separados por divisórias navais.

A ausência de regalias, porém, é compensada com o controle de qualidade. Ao sair do prédio, o cliente recebe um torpedo em que se pede que avalie o profissional que o atendeu com nota entre zero e 10. O conceito é visto imediatamente em uma TV de tela plana instalada na sede corporativa, hoje no Jardim Paulista. Se for inferior a 8, ele recebe uma ligação para que se constate o que faltou para o 10, e o médico pode ser acionado. No Procon, a empresa não se sai mal - apenas três reclamações nos quase quatro anos de história. "Para aprimorarmos a qualidade, estamos estudando a criação de uma nota técnica, baseada no protocolo de atendimento em cada doença", diz a cardiologista Tatiana Hirakawa, diretora médica.

A gestão da rede é orientada por métricas. Dos bairros onde moram os pacientes aos atrasos das equipes, tudo é monitorado em sistemas operados por um time de catorze profissionais de informática. A maioria dos 120 empregados tem metas - recepcionistas, por exemplo, são cobradas pelo número de pessoas que conseguem receber em determinado período. Para compartilhar a experiência do consultório, foram elaborados cinco pacientes fictícios, representativos do cliente médio, que são evocados em discussões diárias. Um exemplo: "Dona Maria, 60 anos, hipertensa, vê muito TV, é quem cuida da saúde do marido". Outro: "Cléverson, 25 anos, adora tênis de marca, tem o pé torcido e verruga genital". Completam a lista "Marinaura, 40", "Laiane 25", e "Seu João, 55 anos".

Todos de perfil muito diferente, claro, do fundador do Dr. Consulta. Criado no bairro de Cerqueira César, Thomaz é filho de Iara, professora de filosofia, e Miguel Srougi, o mais conceituado urologista do país. Quem conhece "o Miguel" (é assim que o empreendedor chama seu pai) vê logo alguma relação familiar com o caráter social do negócio do filho. Com pacientes que vão de Silvio Santos a Joseph Safra, passando por boa parte da elite política do país, o urologista costuma pedir ajuda aos poderosos para ações filantrópicas - na USP, onde é professor, já arrecadou milhões de reais que bancaram, por exemplo, uma casa destinada a 52 estudantes de medicina sem condição de pagar aluguel e um laboratório no qual alunos treinam laparoscopia em porcos antes de fazer o procedimento em humanos. Além disso, metade dos homens que ele atende não paga a consulta de 900 reais, por amizade ou falta de recursos. Victor, de 31 anos, o único irmão de Thomaz, seguiu medicina, na mesma especialidade do patriarca. Nenhum dos dois médicos da família dá expediente na rede, mas o pai é conselheiro frequente, principalmente nas questões de humanização do atendimento e valorização do médico.

Casado e pai de dois filhos, o idealizador do Dr. Consulta é formado em administração pela Faap, estudou políticas públicas na Universidade de Chicago e gestão em Harvard. Foi sócio da construtora Tenda, mas a experiência que cita com maior entusiasmo são os quase dois anos na área financeira da Ambev. A cervejaria faz parte do grupo de negócios comandado pelo empresário Jorge Paulo Lemann, cuja marca principal é a obsessão por eficiência e controle de custos. "Eu me identifiquei com o trabalho pragmático, sem desperdícios", enfatiza. Srougi busca a todo momento uma alternativa para economizar. Costuma trabalhar de tênis e camiseta (às vezes meio amarrotada) e se locomove com as unidades de trem, metrô e ônibus. "Não ligo de levar pisão no pé", brinca. A picape Mitsubishi L200 está sempre empoeirada por falta de uso - motivo pelo qual a bateria arriou recentemente. Para fazer render o investimento inicial da empresa, ele próprio desenhou o logotipo, uma cruz azul dentro de um círculo, no programa PowerPoint. Quando funcionários pediram uma cortina para um escritório, resolveu o problema colando folhas de papel adquiridas por poucos centavos em uma papelaria. Mais: a gravação de sua vez é a que é ouvida quando algum cliente telefona fora do período de atendimento  (ele captou o áudio no celular). Se ele ligar em horário comercial, a locução será de Guilherme Azevedo, o principal sócio, administrador graduado pela Fundação Getúlio Vargas.

A ordem é manter o mesmo estilo frugal em tempos mais prósperos. No início do ano, o empreendimento recebeu aporte de cerca de 30 milhões de reais de dois fundos de investimento estrangeiros, o Kaszek Ventures e o LGTVP, comandado pelo príncipe Maximiliam, de Liechtenstein, voltado para investimentos com bom impacto social. "Se no começo eu perdia o sono por não ter recursos para as contas, hoje não durmo pela responsabilidade de honrar o dinheiro dos outros", diz Srougi, que aplaca a ansiedade com uma hora de corrida todas as manhãs e partidas de tênis antes de dormir. No meio acadêmico internacional, o negócio também começa a chamar atenção. O administrador foi convidado a apresentá-lo em Harvard, e a clínica é tema de um estudo da Universidade de St. Gallen, na Suíça.

Há, porém, quem olhe a iniciativa com reservas. "Esse modelo vai contra o que eu sempre defendi", afirma o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Albert Einstein. "Uma rede precisa ter suporte de diagnóstico e internação. Chega uma hora em que o paciente não consegue pagar pelos exames ou pelos procedimentos e tem de voltar para o SUS, começar tudo de novo." Srougi se defende da crítica. "Uma minoria de 10% dos casos é complexa, de modo a ser preciso recorrer ao SUS, mas fico feliz em atender por completo os outros 90%", pondera, finalizando o raciocínio com uma metáfora. "Preparamos um carro popular para dirigir até Campinas. Se a viagem for até Fortaleza, o mais eficiente será tomar um avião." Mas que ninguém enxergue no empreendedor ambições de curtas distâncias. "Depois de alcançarmos vinte unidades, queremos expandir rapidamente para cinquenta e passar a fazer pequenas cirurgias, como operação de catarata", adianta. "Meu sonho é ter um Dr. Consulta perto de cada brasileiro."




(texto publicado na revista Veja São Paulo de 19 de novembro de 2014)








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