Duas décadas após a morte de Ayrton Senna, a marca do piloto bate recorde de faturamento - o desafio agora é tirar do papel uma estratégia para resistir aos próximos anos
Nos primeiros 25 dias de maio, a italiana Ducati esgotou as 161 motocicletas de uma série limitada, produzida com exclusividade para clientes brasileiros. Todos fecharam negócio sem dar uma volta ou mesmo conferir a máquina de perto. Aliás, elas nem sequer saíram da fábrica da companhia em Manaus. Mesmo assim, os clientes pagaram à vista por algo que só será entregue a partir de agosto. A única referência que tinham, além das especificações técnicas, era que se tratava de uma série especial para o aniversário de morte do piloto Ayrton Senna. A pequena quantidade de unidades disponíveis faz referência ao total de corridas que ele disputou na Fórmula 1. Com uma série tão restrita, o jeito foi agir com discrição. Sem fazer barulho, a empresa entrou em contato com clientes selecionados e ofereceu o modelo por 100 000 reais - o dobro do valor médio de venda da companhia. O saldo foi um faturamento de 16 milhões de reais, equivalente a quase metade das receitas no país em 2013. "Não esperávamos um sucesso tão grande", afirma Arthur Wong, diretor de marketing da Ducati no Brasil.
Além da Ducati, outras 91 companhias hoje têm a assinatura de Senna em mais de 700 itens - de motocicleta a canetas. Em 2013, os produtos licenciados com a marca do piloto renderam 21,2 milhões de reais em royalties, o triplo da arrecadação registrada há uma década. A projeção para este ano é de 30 milhões de reais, com novos contratos, como o da Ducati e o da marca italiana de canetas Montegrappa, que lançou em abril uma linha que leva a assinatura de Senna. Segundo um estudo recente da consultoria Boston Consulting Group (BCG) com 2 000 pessoas, o piloto lidera a lista de celebridades esportivas no Brasil, com preferência de 86% dos entrevistados. E é o único do ranking que já morreu. Os demais, pela ordem, são Pelé e o ex-jogador de basquete Michael Jordan. "É impressionante, se pensarmos que Senna morreu há 20 anos", diz Christian Orglmeister, sócio-diretor do BCG. "Não há nada parecido no Brasil."
Mesmo no mundo são raros os exemplos de personalidades cujo sucesso póstumo supera o que tinham em vida. Nos Estados Unidos, o primeiro e o segundo lugar da lista das celebridades mortas que mais faturam pertencem, pela ordem, aos cantores Michael Jackson e Elvis Presley, ambos vítimas de um inesperado ataque cardíaco. "A morte repentina ajuda a construir um mito em torno do ídolo", afirma Fred Lucio, professor de antropologia da ESPM, em São Paulo. Após a morte de Presley, em 1977, a ex-mulher do cantor, Priscilla, transformou a mansão do astro num ponto de visitação. Na época, a intenção era usar o dinheiro para pagar as dívidas do imóvel. Nos anos seguintes, o local virou ponto turístico - e até hoje atrai 500 000 visitantes por ano a Memphis, nos Estados Unidos. A marca, sob a responsabilidade da filha do cantor, Lisa Presley, arrecadou 55 milhões de dólares em 2013 - muito mais do que os 19 milhões de dólares, em valores corrigidos pela inflação, que ele faturava no ano em que morreu. Primeira da lista, a marca Michael Jackson arrecadou 1 bilhão de dólares nos primeiros 12 meses após a morte do cantor, em 2009 - quase dez vezes mais do que ele faturou em média nos últimos anos. Tudo isso com uma série de lançamentos, como o disco póstumo Michael, o jogo eletrônico The Experience e o filme This is It, sobre o espetáculo que ele não viveu para apresentar.
No caso de Senna, uma coincidência foi crucial para a perenidade da marca. Meses antes de seu acidente fatal na Itália, ele criou o Instituto Ayrton Senna, com a missão de melhorar a qualidade de escolas públicas em todo o país. Desde o início, em 1994, o comando da ONG ficou com sua irmã, Viviane Senna, atual diretora e presidente do conselho. A gestão da marca começou naquele momento, com a definição de que uma parcela dos investimentos viria de royalties de produtos que levassem o nome do piloto. O primeiro acordo foi assinado com uma fabricante de bicicleta. O personagem Senninha, voltado para o público infantil, entrou em cena logo depois e por muito tempo dominou boa parte dos contratos fechados pelo instituto, com itens como cadernos e calçados de empresas como Suzano e Grendene. "Percebemos que poderíamos investir mais em produtos com rentabilidade maior", afirma Viviane. A virada ganhou força em 2011, com a chegada de um time especializado no assunto. Pela primeira vez, foi contratado um diretor para cuidar da área de negócios. O escolhido foi Marco Crespo, ex-diretor da consultoria BCG. Quando ele chegou, apenas duas pessoas integravam a área. Hoje são 18 profissionais, todos vindos de grandes empresas. "Era preciso aumentar o número de parcerias, sobretudo com marcas estrangeiras", diz Crespo. A decisão foi reforçada quando uma pesquisa apontou que a aprovação do piloto era maior na classe A (faixa em que chega a 94%) do que na classe C (com 85%). Desde então, marcas de luxo, como as suíças Tag Heuer e Hublot, fecharam acordo com o instituto. O auge dessa estratégia deverá acontecer nos próximos anos com o lançamento de jatos, barcos e carros de luxo com o nome de Senna. Ao mesmo tempo, há o esforço de lançar acessórios para o público de até 25 anos, como camisetas e chaveiros. O primeiro site exclusivo para vender esses itens tem lançamento previsto para o início de junho, na Europa. No Brasil, deverá ser no mês seguinte.
Futuro da marca
À medida que avança nos produtos de luxo, o instituto prepara o caminho para manter a longevidade da marca nos próximos anos. Daqui para a frente começa seu teste mais duro: resistir entre os consumidores que nunca viram o piloto correr. Um sinal amarelo aparece em alguns nichos com a marca Senninha. Há uma década, produtos que estampam o personagem correspondiam a 20% das receitas da fabricante de chocolate Top Cau, por exemplo. Hoje, equivalem a apenas 2%. "Outros personagens ganharam espaço para esse público", diz Alais Fonseca, diretor de marketing da Top Cau. Para manter a imagem do piloto viva, um dos planos é lançar uma série infantil para a TV fechada, batizada de Zupt. Os episódios começarão a ser produzidos neste ano. Também em 2014 imagens reais de corridas foram acrescentadas a jogos eletrônicos, como o simulador de Fórmula 1 Gran Turismo 6, da Sony. A chave, nesse caso, é criar um elo emocional entre esse público e o piloto. "Só assim vamos garantir os próximos 20 anos", diz Viviane.
(texto publicado na revista Exame edição 1067 - ano 48 - nº 11 - 17 de junho de 2014)
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