As cotas de programação nacional na TV por assinatura aumentaram o número de séries brasileiras - mas os produtores têm mais motivos que os espectadores para celebrar
Produtores e diretores andam eufóricos. Falam até em uma "década de ouro" da TV nacional. De fato, nunca se produziram tantos programas - de humor, de culinária, de variedades, de ficção - no Brasil. Esse é o resultado dos quase três anos de vigência da lei gestada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) que estabelece uma cota de conteúdo nacional na programação dos canais pagos. O mínimo exigido são três horas e meia de programas brasileiros por semana - e não vale enterrá-los na alta madrugada: tem de ser exibidos durante o chamado horário nobre, das 7 à meia-noite. "Antes, nós batíamos na porta dos canais pagos. Hoje, é o caminho inverso: são eles que pedem programas", comemora Gil Ribeiro, diretor-presidente da Conspiração Filmes, produtora que, para atender à demanda, montou um núcleo de TV com trinta profissionais, treze deles roteiristas com a missão de criar programas. Produtoras que antes faziam o grosso do seu caixa filmando comerciais agora estão lucrando com a venda de séries. Até 2011, quando a lei entrou em vigor, 95% da receita da O2 Filmes vinha de publicidade, mas hoje a área de cinema e séries para TV e internet já responde por metade do bolo. Para aumentar a alegria, há cerca de um mês o governo federal anunciou mais uma dessas bondades como o dinheiro do cidadão brasileiro que têm longa tradição no setor: um pacote de 480 milhões de reais para estimular a produção de TV e cinema, oriundos do Fundo Setorial do Audiovisual, gerido pela Ancine.
Mas vamos com calma: a expressão "era de ouro" diz respeito só à quantidade, pois até o momento, ao menos, não houve ganho notável de qualidade. Velhos problemas da indústria de TV e cinema do país continuam onde sempre estiveram. E, como seria de esperar de uma política de imposição de "reservas" nacionais, até aqui a lei, em vez de aprimorar a indústria, inflacionou o mercado, aumentando custos e evidenciando a falta de profissionais qualificados para trabalhar nas novas produções. O espectador ainda não tem razão para se juntar ao espocar de fogos e rolhas de champanhe dos produtores.
Há, sim, interesse do público pela ficção nacional. Das dez séries mais vistas na TV por assinatura em 2013, cinco são brasileiras. Todas, porém, são de canais da Globosat, braço da Rede Globo na televisão fechada, que já antes da lei investia pesado na produção nativa. A série campeã foi feita não para cumprir a cota, mas para atender o novo público da TV paga, cujo número de assinantes cresceu em média 17% ao ano entre 2006 e 2013 e hoje bate em 18,8 milhões. A comédia Vai que Cola foi projetada, a partir de pesquisas de público conduzidas pela própria Globosat, para o novo contingente de espectadores das classes C e D. "Constatamos que muitos querem apenas sentar na frente da TV e ser entretidos com humor leve", diz Alberto. Pecegueiro, diretor-geral da Globosat. Na substância, não é nada diferente do que já se via em programas do gênero na TV aberta, como Zorra Total ou A Praça é Nossa. Repete-se, na explosão das séries da TV paga, o fenômeno do recente boom do cinema nacional: a comédia mais tosca domina. Um drama nacional de boa cepa só aparece bem abaixo: Sessão de Terapia, adaptação de um programa israelense dirigida por Selton Mello, figura em 26º lugar na lista liderada por Vai que Cola.
Será ilusório, porém, resumir as deficiências da produção corrente em torno de dicotomias duvidosas como "popular/sofisticado". Em todos os níveis, há um problema renitente, que já assolava o cinema e a ficção da televisão aberta: a baixa qualidade dos roteiros. A extrema profissionalização do processo de redação e revisão do texto está na base do salto de qualidade das séries americanas (e estas, sim, vivem uma era dourada) desde Família Soprano, exibida pela HBO entre 1999 e 2007. Quem deseja um vislumbre do trabalho intensivo de tratamento do roteiro no competitivo mercado brasileiro está convidado a ver os extras do Blu-ray de Breaking Bad: Vince Gilligan, criador da série, aparece comandando uma equipe de seis escritores, em longas reuniões nas quais cada virada da história, cada desenvolvimento é discutido e escrutinado em detalhes. No Brasil, não vigora a mesma cultura do trabalho duro e da crítica mútua. Roteirizar um filme, uma série ou até uma novela ainda é, em grande parte, uma empreitada voluntarista, na qual o ego do autor ocupa o centro. Na Globo e na Globosat há, é verdade, um esforço para aperfeiçoar o trabalho dos mais de 300 roteiristas que estão na folha de pagamento. No início dos anos 2000, eles eram preparados para escrever séries no estilo novelinha, como A Diarista e Sob Nova Direção. "Esperava-se que eles criassem no padrão habitual da casa. O mercado, então, quase não tinha outra exigência", diz um executivo da emissora. A entrada nos canais pagos de produções como Família Soprano e Mad Men mudou tudo - até para a TV aberta: séries como O Canto da Sereia e Amores Roubados perseguem (e em boa parte atingem) um novo padrão. Estabeleceu-se também uma parceria mais íntima entre a TV aberta e a Globosat, em uma rede de colaborações e coproduções: projetos concebidos na Globo são terceirizados para produtoras independentes e depois exibidos nos canais fechados. Escrita e dirigida por Paulo Nascimento, roteirista da Globo, e com Edson Celulari no papel principal, Animal - um drama de suspense bastante ousado, com tintas psicológicas meio sombrias - que estreia nesta quarta-feira no GNT, é o primeiro fruto desse novo processo. A segunda série, já aprovada, com o título provisório de A Idade Perigosa, será dirigida pela atriz Leandra Leal.
O efeito mais imediato da cota nacional foi o inchaço do orçamento dos programas, cujo custo subiu, na média, 50%. Os produtores, naturalmente, estão felizes com isso, mas, ao lado dos exibidores, muitos chiam. "O preço está uma aberração", reclama Rogério Gallo, dos canais Turner. O aumento da demanda por programas brasileiros agravou também a falta de mão de obra qualificada. "Em alguns produtos faltam diretores, e somos obrigados a recrutar assistentes de direção, que não têm a mesma experiência mas cobram o mesmo cachê", diz a produtora Tatiana Quintella, da PopCorn. Escolas e cursos de formação não são numerosos e nem sempre estão atualizados com os avanços tecnológicos e criativos da área. Mas o interesse por eles vem crescendo: neste ano, o curso de audiovisual foi um dos mai disputados no vestibular da Universidade de São Paulo - sua nota de corte foi de 59 pontos, atrás apenas de medicina e engenharia.
A reserva de mercado cria, como se vê, distorções. E o generoso financiamento público engendra vícios: há programas que dependem do dindim federal para chegar às telas. No ano passado, a canhestra série Vida de Estagiário, exibida pela Warner, teve a segunda temporada cancelada porque esbarrou nos trâmites burocráticos da Ancine e não conseguiu a liberação de sua fatia do Fundo de Audiovisual - os produtores esperavam que o incentivo cobrisse 80% do orçamento.
Já está previsto um endurecimento da reserva: a partir de 2015, a cota de conteúdo nacional deverá ser preenchida apenas com programas realizados nos últimos sete anos. A intenção, afinal, é incentivar novas produções - e muitos canais, para se adequar à lei, passaram a exibir sempre os mesmos filmes. Já foi comum ver Carlota Joaquina ou Tropa de Elite na programação de até três canais, no mesmo horário. E houve quem lançasse mão de uma malandragem ainda mais absurda para preencher as três horas e meia de programas verde-amarelos: fizeram os créditos finais dos filmes correr mais lentamente, aumentando o seu tempo total em até cinco minutos. A festa da TV nacional tem dessas esquisitices.
(texto publicado na revista Veja edição 2385 - ano 47 - nº 32 - 6 de agosto de 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário