sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O vírus do pânico - Natalia Cuminale


Ao chegar aos Estados Unidos e à Europa, depois de alguma displicência das autoridades sanitárias, o ebola disseminou um mal difícil de controlar: o medo

Pode-se dizer, a respeito da chegada do ebola aos Estados Unidos e à Europa, que a disseminação do vírus está relativamente controlada. Não há perigo de epidemia, como já ocorre na região ocidental da África. No entanto, eis aí outra certeza, o pânico virou pandemia. Na semana passada, pressionado pela desconfiança da opinião pública, Barack Obama nomeou um czar para zelar pelo controle do ebola. Em frente à Casa Branca, manifestantes pediram a suspensão dos voos provenientes dos países africanos de maior incidência da doença. O ateliê de vestidos de noiva e o salão de beleza por onde passou uma das duas enfermeiras americanas diagnosticadas com o vírus fecharam suas portas. Há medo.

Ele é exagerado, mas nada há a ser feito contra essa percepção, a não ser reforçar os controles sanitários contra o ebola e explicar claramente onde houve erro - e foram muitos. Tom Frieden, diretor do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC), reconheceu uma grave falha no sistema americano de vigilância. O caso mais emblemático de displicência é o da enfermeira Amber Joy Vinson, de 29 anos, que esteve envolvida nos cuidados com o liberiano Thomas Duncan, morto há duas semanas no Hospital Presbiteriano de Dallas, no Texas. Com casamento marcado, ela foi de Dallas para Cleveland, onde sua família mora. Recebeu a autorização do CDC para viajar. Na volta, antes de embarcar, informou estar febril, com 37,5 graus. Mesmo assim, permitiram-lhe voar. Um dia depois, o diagnóstico: infecção por ebola.

Relatório interno da Organização Mundial de Saúde (OMS) vai direto ao ponto ao explicar a epidemia africana: os métodos tradicionais usados no controle de doenças infecciosas não funcionaram em regiões com fronteiras porosas e sistemas de saúde falidos. "A tempestade perfeita estava se formando, pronta para estourar com força total", lê-se no documento. Mantido o ritmo atual, até dezembro o número de novos contaminados na África, conforme dados da OMS, deve chegar a 10 000 por semana - uma taxa dez vezes superior à de hoje. O vírus já infectou mais de 9 000 pessoas e matou 4546, a imensa maioria delas na Guiné, em Serra Leoa e na Libéria. Teme-se a chegada do vírus à China e à Índia, países de imensa população e minúsculo sistema de saúde. VEJA entrevistou um dos maiores especialistas do mundo em biossegurança e contenção de epidemias, o australiano naturalizado americano Gavin Macgregor-Skinner, da fundação Elizabeth R. Griffin Research, organização dedicada a pesquisas e treinamentos de pessoal em áreas de risco biológico e apoio em saúde pública. Na entrevista a seguir revela-se o que é verdade e o que é mito no ebola.

Como se justificam os casos de ebola nos Estados Unidos e na Espanha?

Falha humana. Para cuidarem de pacientes com ebola, os profissionais de saúde precisam de treinamento intenso. Devem aprender como colocar o equipamento de proteção pessoal e, principalmente, como retirá-lo. Quando se usa um traje desse tipo, a temperatura interna ultrapassa os 46 graus. Faz calor, o suor é intenso, o peso é insustentável. A exaustação é inevitável. Quando o trabalho acaba, só vem à cabeça a ideia de se livrar daquilo tudo. nesse momento ocorrem os erros. Mesmo com roupa corretas, dá-se a infecção por falta de cuidado, fruto da supervisão inadequada. As enfermeira, por exemplo, trocam fraldas, aplicam medicamentos, tiram usando usando luva cirúrgica. Imagine terem de fazer isso com duas luvas grossas. É difícil, desconfortável, requer atenção máxima.

O senhor teme uma epidemia?

Não. O número de infectados fora da África é pequeno e é possível contê-lo. Dispomos de todas as ferramentas para o controle do ebola - o mapeamento de possíveis infectados e a detecção precoce dos doentes. Mas precisamos tirar essas ferramentas da caixa e usá-las adequadamente. Os protocolos para o manejo do vírus estão bem estabelecidos. Mas, na prática, eles nem sempre são seguidos. Veja o que aconteceu com o liberiano Duncan em Dallas. Com febre, ele procurou o hospital. Disse que havia chegado da Libéria, e essa informação foi anotada em seu prontuário. Mas não soou o alarme para os médicos que o atenderam. Ele foi mandado de volta para casa com prescrição de antibióticos. Há uma distância enorme entre o que está no papel e o que realmente acontece na prática.

Como diminuir essa distância?

Além de toda a infraestrutura hospitalar, com áreas de isolamento, é necessário treinar e treinar, incansavelmente, as equipes. Não somente médicos e enfermeiros, mas todos os funcionários - os agentes de segurança, cozinheiros, faxineiros. Ao treiná-los e conscientizá-los sobre a importância do controle do vírus, o risco de contaminação diminui muito. Além disso, todos ficam aptos a detectar eventuais erros. Em se tratando do ebola, é preciso contar com um sistema de supervisão extremamente sofisticado. Dispor de funcionários que não toquem o paciente, mas que acompanhem o trabalho dos que lidam diretamente com o doente para garantir que erros não sejam cometidos. O manejo dos pacientes com ebola não é fácil, especialmente daqueles em estado grave.Quando eles pioram, têm muita diarreia e vômito - ininterruptamente. Esses fluídos contêm bilhões de vírus. O profissional precisa acompanhar a saúde do paciente e, ao mesmo tempo, permanecer atento ao ambiente. Há que ser 100% rigoroso. Com o ebola não há uma segunda chance.

O senhor esteve à frente de equipe que coordenou a contenção do ebola na Nigéria. Nesta semana, a OMS deve declarar o fim da epidemia naquele país. Como foi seu trabalho lá?

Fomos acionados em julho pelo governo nigeriano, quando o liberiano Patrick Sawyer foi diagnosticado com o ebola. Utilizando recursos locais, sem nenhum aparato tecnológico ou terapia experimental, conseguimos rastrear as 891 pessoas que tiveram contato direto  ou indireto com o paciente. Treinamos a população local para ajudar nesse mapeamento e na identificação precoce dos doentes. Dos vinte infectados no país, doze sobreviveram.

Na semana passada, a OMS revisou a taxa de mortalidade por ebola. Ela foi de 50% para 70%. O vírus ficou mais letal?

Não. Os dados estão mais precisos. Na Nigéria, por exemplo, a taxa de mortalidade foi de 40%. Quando se diz que 70% dos infectados morrem, levam-se em conta as informações de todos os países africanos atingidos pela epidemia. Nos locais onde a contenção do vírus está funcionando, a taxa de sobrevivência é naturalmente maior.

Desde a descoberta do vírus, em 1976, já se contabilizam 26 surtos de ebola. Em que a atual epidemia na África difere das outras?

É a primeira vez que o ebola está circulando na África Ocidental. Antes, ele se manifestava, sobretudo, na África Central. O vírus nunca infectou tantas pessoas. Vai de um paciente para outro - e não para. Nos surtos anteriores, com uma taxa de mortalidade ao redor dos 90%, o ebola não se disseminava com tanta facilidade. Além disso, ele saiu das áreas rurais e atingiu os grandes centros. Como as pessoas vivem mais próximas, há mais contato direto entre elas. O potencial de proliferação aumentou.

Há o risco de o ebola vir a ser transmitido pelo ar?

Não. Há especialistas analisando amostras do vírus diariamente, em busca de eventuais alterações genéticas. Até agora, não foi detectada nenhuma mudança na estrutura do vírus responsável por sua transmissibilidade. Além disso, a partir das evidências científicas atuais, posso dizer que essa mutação não ocorrerá.

O senhor já trabalhou no controle do vírus H5N1, que provocou o surto de gripe aviária, em 2004, e no do H1N1, responsável pela eclosão da gripe suína, em 2009. Qual a diferença entre aquelas epidemias e a atual, de ebola?

O ebola afeta o indivíduo de duas formas: biologicamente, o vírus causa a doença; psicologicamente, transmite pânico. Não há vacina ou tratamento específico para o ebola. É isso que provoca medo, inclusive entre os profissionais de saúde. O medo não é bom em nenhuma situação de emergência de saúde pública. Quando isso ocorre, aumenta a probabilidade de erros e, consequentemente, o risco de infecção é maior.

Recentemente, o Brasil registrou o primeiro caso suspeito de bola - um refugiado guineano, no interior do Paraná. Depois desse episódio, imigrantes africanos das regiões de maior incidência do ebola chegaram a ser hostilizados. Na semana passada, manifestantes americanos pediram a suspensão dos voos vindos da África Ocidental. Fechar as fronteiras dos países acometidos pela epidemia é uma estratégia?

Não. Muitos dos meus colegas médicos que estão na África precisam de suprimentos. Se as fronteiras forem fechadas, o caos será ainda maior, com a falta de equipamentos de proteção, remédios, alimentos. O impacto econômico do ebola já é alto por si só. Não podemos estigmatizar um país só porque ele tem uma doença altamente infecciosa. Esse é o meu maior medo.

Alguns pacientes receberam tratamentos experimentais, como o anticorpo monoclonal ZMapp e a transfusão de sangue de pacientes curados. Até onde vai a eficácia dessas terapias?

Não sabemos. Ainda não há informações suficientes para responder a essa pergunta. Os estudos até agora foram feitos apenas com animais. Acompanhei um paciente em tratamento com o anticorpo monoclonal ZMapp. Um dia ele melhorou, depois ficou doente de novo, depois melhorou. Outro doente morreu. O mesmo vale para as transfusões de sangue de pacientes curados. Ninguém até agora foi salvo pelos tratamentos experimentais.

É possível comparar o ebola ao HIV?

A única semelhança entre os dois vírus é o estigma criado em relação aos doentes, aos seus familiares e a comunidades inteiras. Os pacientes com HIV foram estigmatizados e tratados como criminosos. É o que está acontecendo com o ebola - inclusive nos Estados Unidos. De resto, não há nenhuma outra semelhança entre os dois vírus. A falta de informação e de educação cria uma atmosfera do medo e não contribui para o combate ao ebola.




(texto publicado na revista Veja edição 2396 - ano 47 - nº 43 - 22 de outubro de 2014)




















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