Os objetos que acumulamos ao longo da vida, em significado ou em quantidade, traduzem nossas crenças e valores
Herdei um anel de madeira. Ele foi feito pelo meu tio-avô em uma macabra oficina onde lhe coube trabalhar. Por sua vitalidade, na hora de repartir os deportados entre a vida e a morte, Ödon foi destinado aos trabalhos forçados em Auschwitz e conseguiu sobreviver. A mesma sorte não tiveram meu avô e meu outro tio, irmão de meu pai.
Ödon furtivamente entalhou esse único pertence pessoal, um tesouro tanto mais valioso pois desafiava o castigo da impessoalidade, que transformava pessoas em números, sem cabelos nem distinção alguma entre si. A despersonalização era uma das formas utilizadas no campo de concentração para matar a identidade antes do corpo. Como ele fabricou e salvou o anel eu nunca soube, mas antes de morrer ele o presenteou a meu pai, seu sobrinho.
Os colegas da instituição psicanalítica à qual pertenço estão criando um museu virtual onde as pessoas podem comparecer com um objeto que considerem especial e descrever sua importância. Nesse museu não haverá nenhuma presença física; só encontraremos histórias e imagens de objetos de relevância pessoal, de preferência que tenham pertencido a alguém a quem a sociedade de alguma forma silenciou. Terei o privilégio de participar com esse anel.
Hoje se fala muito em desapego, um debate imprescindível em uma sociedade que vive produzindo lixo, cercando-se de objetos descartáveis comprados por compulsão. Como a identidade nunca foi tão frágil e avulsa, acabamos sentindo-nos representados pelo que possuímos. Cada um amontoa sobre si uma miríade de coisas através das quais espera se valorizar. O problema é que, como nenhuma delas faz efetivamente uma marca, tornam-se obsoletas e vão para o lixo as inúteis tentativas de ser alguém por seu intermédio.
É fundamental saber descartar e dar-se conta da inutilidade do acúmulo. Isso passa também por escolher quais são nossos verdadeiros pertences. Os mendigos talvez tenham algo a ensinar: eles costumam ter sempre consigo uma trouxinha ou sacolinha que, aos nossos olhos, estaria cheia de lixo. Muitas vezes ela está mesmo, contém trapos sujos e jornais amassados, que somente possuem o significado de representar o único pertence daquele que é nada. Não é estranho que os que se sentem como um nada preencham sua trouxa com o que também não é nada. Os bebês, que ainda sabem ser pouca coisa, apegam-se a um trapo ou brinquedo encardido, primeiro pertence pessoal.
Provavelmente, para Ödon, a construção desse anel fez parte de sua estratégia de sobrevivência. Encerrada sua longeva existência, em outro continente, uma descendente que ele nunca conheceu pessoalmente o escolheu para esse museu de objetos peculiares. Como ele, também tentarei deixar algo que possa ser usado pelas gerações futuras para contar uma história. "É interessante, como dentro do essencial, recordo principalmente de pequenos detalhes que ganham importância e se fiam na memória", escreveu Ödon a meu pai.
(texto publicado na revista Vida Simples nº 161 - agosto de 2015)
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