quinta-feira, 30 de julho de 2015

O corpo em harmonia - Regina M. Azevedo

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Quando maltratado, o corpo é o hospedeiro perfeito para doenças e ataques psíquicos de toda a espécie. Mais do que uma questão estética, portanto, mantê-lo em equilíbrio é uma obrigação do ser humano.

"Dezessete, dezoito, dezenove, vinte." Ufa!! Mais um lance vencido. Coração na boca, respiração ofegante, dor nas costas, na barriga da perna. Sempre que falta energia elétrica, a resposta invariável do serviço de informações tem sido: "Reparos na rede, cerca de duas horas para o funcionamento normal." Também, quem mandou morar no 13º andar? E tome escada... Coragem, afinal são apenas mais 12 andares (já estou no térreo, depois de galgar o primeiro e o segundo subsolos!), 24 lances de dez degraus cada um, o que perfaz um total de... Deixa pra lá.

E a minha energia, quando vai voltar? Dizem os mais velhos, do alto de sua sabedoria, que a vida começa aos 40, mas o que não nos contam é que, a partir, daí, começam também algumas complicações. Caminho a passos largos para essa "idade de ouro"; pensando melhor, talvez o cansaço me impeça de empreender passos tão largos assim... De qualquer forma, sinto que me aproximo rapidamente; digamos que o tempo é que empreende passadas gigantescas, com rapidez, constância e eficiência. Trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove, quarenta. Falta pouco.

Caminhar é um exercício natural do homem, afirmam encorajadoras as revistas dedicadas à boa forma. Natural uma ova, esta bendita escada que o diga!! Afinal, você nasce deitado, primeiro aprende a sentar com ajuda de terceiros e muito esforço; em seguida se põe de quatro, como a maioria dos filhotes mamíferos; levanta-se, enfim, sobre seus frágeis e delicados pés, cai, levanta, cai, levanta, cerca de 1.620 vezes, segundo pesquisas,  e então sai andando desajeitado, mais ou menos equilibrado e todo seguro de si... até levar o próximo tombo e esfolar novamente o joelho, pondo em dúvida os benefícios de se manter sobre duas pernas, insistindo nesse exercício sacrificado que é o caminhar.

Você cresce e, em tempos de acomodação tecnológica, passa grande parte do tempo sentado, seja na sala de aula, no carro, diante da TV (com controle remoto!) ou dos games instalados no seu computador. Você namora confortavelmente (sentado) via Internet, não tem mais aquela aporrinhação de ter de se produzir, perfumar, caminhar ou tomar o metrô para encontrar o bem-amado. Pode matar a saudade, superando quilômetros de distância, movendo apenas um dedinho, tocando de leve as teclas do telefone sem fio, que oferece a vantagem extra de uma conversa calorosa (deitado) sob lençóis macios e cobertor peludo.

Todas as engenhocas modernas vão inibindo e minimizando os movimentos naturais do homem. Como diz a cantora Elza Soares, aeróbica praticava-se antigamente enfrentando o tanque de roupa, varrendo o quintal, encerando o chão da cozinha. Minha mãe conta histórias incríveis sobre como, quando criança, tirava água do poço e carregava baldes e mais baldes para lavara louça ou limpar a latrina, que lhe valeram, como recompensa, braços bem torneados. Para a geração videogame, isso deve parecer um relato de tempos bem remotos, próximos à Idade Média. E ainda há quem reclame de não ter água quente na torneira do banheiro...

Atualmente, subir escadas ou ladeiras e até mesmo ficar de pé, numa fila de banco, por exemplo, representam sacrifícios enormes ao nosso acomodado (e algo desengonçado) corpo. Repare só na postura das pessoas quando sentadas à mesa de um bar ou enfileiradas à espera de um caixa atencioso que os liberte da espera interminável. Os pés raramente estão apoiados com firmeza no chão, o peso recai sobre uma das pernas; as costas arqueadas e ombros projetados para a frente dão sinais de cansaço, os braços parecem não fazer parte do conjunto. A fadiga se traduz ainda através das olheiras fundas, a tez pálida, os cabelos descuidados, um verdadeiro esculacho. Assemelhamo-nos a nossos remotos parentes símios. Será que esse desleixo é produto do meio hostil em que vivemos e que temos de enfrentar diariamente para ganhar o pão de cada dia? "Homem primata, capitalismo selvagem", afirma o refrão nos versos irreverentes dos Titãs.

Esgotamento físico e mental é assunto presente nas principais revistas, sejam femininas, masculinas, de negócios, saúde, esportes ou variedades. Estresse é jargão tão comum no vocabulário do nosso dia-a-dia que até ganhou a forma aportuguesada, com um "e" no começo, outro no final. Esse cansaço excessivo, a falta de pique, muitas vezes sem motivo aparente, serão resultantes apenas do desgaste físico que o corre-corre cotidiano nos impõe? Há de fato muita correira, mas podemos nos deslocar mais rápido com a ajuda de um automóvel para cumprir nossa agenda. Assim como nossos aliados de quatro rodas, cada vez mais,geringonças tecnológicas nos acomodam na lei do mínimo esforço; é claro que precisamos coordenar todas as tarefas, e aí a mente entra em ação. Mas por que o corpo padece tanto, se muitas vezes nem é acionado nessa roda-viva diária? Você pode sair da sua cadeira giratória simplesmente moído ao final do expediente, apesar do design anatômico e dos seus tolhidos movimentos...

Corpo, mente e espírito são as três dimensões inseparáveis que constituem o ser humano. Não tenho dúvidas de que o cansaço físico, a falta de energia traduzem também desgastes mentais e espirituais. Corpo em dia, forte, vigoroso, com tudo em cima, músculos superdesenvolvidos, modelagem "localizada"... mas cansado. Atingir a perfeição do corpo para que ele sustente nossos músculos, sangue, pele e ossos será suficiente para sustentar ainda os desafios impostos à mente e as inquietudes experimentadas pelo espírito?

Por ser o suporte material do homem, o corpo muitas vezes é louvado de forma exagerada por aqueles que perseguem obsessivamente a perfeição da máquina humana. Ou relegado a um plano secundário por intelectuais e espiritualistas, pessoas que privilegiam seu lado imaterial e abstrato. Muita cerveja, uísque ou caipirinha estão presentes nas rodas dos bares onde mentes brilhantes discutem os destinos do mundo, resultando em barriguinhas proeminentes, fígado cansado, não raro compondo o visual com barbas e cabelos encaracolados, roupas despojadas e total falta de tempo para cuidar da aparência, o que incluiria necessariamente boa dose de exercícios físicos. Depois de praticar por anos a fio o "halterocopismo" (para quem não sabe, expressão usada para descrever o "dinâmico" gesto de levar o corpo à boca várias vezes seguidas em pequenos intervalos de tempo, numa corruptela do conhecido halterofilismo), sem dúvida o corpo está um caco. Não creio que essa debilidade também possa ser justificada apenas pelo uso excessivo da mente, mas pelos poucos cuidados dispensados à carcaça que serve de suporte ao cérebro gerador das ideias e da imaginação.

Do mesmo modo, alguns espiritualistas igualmente desligados da matéria também descuidam dessa importante morada do espírito, optando por um modelo empobrecido, despido de vaidade, que, mal administrado, resulta em humildade exagerada, auto-flagelação, baixa auto-estima. Somente os que buscam a elevação espiritual como único caminho de suas existências podem se dar ao luxo de relegar o corpo a um plano secundário, vivendo de forma a suprir minimamente suas necessidades. Convém que se resguarde em lugares com infra-estrutura adequada para que possam viver a plenitude de sua espiritualidade (monastérios, ashrams, templos) e que sejam iniciados de acordo com as tradições por mestres habilitados. Sem esse respaldo, um corpo malcuidado e enfraquecido é uma porta aberta para doenças e ataques psíquicos de toda natureza. Conheço uma porção de histórias sobre rituais ou workshops de finais de semana pretensamente espiritualistas que propõem jejuns radicais, expondo seus participantes a flagelos como frio, fome, fome, abstenção do sono, desconforto físico. É claro que, além de proporcionar apenas um tipo malvado de penitência, em dois ou três dias o espírito não poderá aprender muita coisa, preocupado que está em oferecer alguma paz e conforto à vítima dessa falsa espiritualização.

Durante muitos anos relutei em aceitar a necessidade de pôr em funcionamento regularmente esta máquina perfeita que Deus me deu. Afinal, se a mente tudo comanda, porque não manter a energia do corpo em equilíbrio somente à custa do pensamento positivo direcionado para essa finalidade? Aos poucos, descobri que nossas engrenagens, quando usadas de maneira inadequada ou insuficiente, emperram ou sofrem desgastes. Articulações bloqueadas, rins incapazes de exercer sua função filtrante por falta de água no organismo, fígado desgastado pelo constante processamento de alimentos pesados e tóxicos, coração e pulmões trabalhando em potência mínima, inaptos para responder quando solicitados em suas cargas máximas. Extremidades dormentes, pele e cabelos sem viço, unhas quebradiças. O corpo é uma máquina e, como tal, necessita de manutenção, lubrificação, revisões periódicas, acionamento constante, habilidade no trato e muito carinho.

Tempos atrás tive a oportunidade de entrevistar Liu Pai Lin, um mestre chinês de artes marciais, dentre elas o tai chi chuan. Fiquei impressionada com seu vigor físico (ele tinha, na ocasião, 80 anos), a pele lisa, as rugas estrategicamente localizadas. Maior foi a minha surpresa quando ele suspendeu a calça para exibir sua perna a um paciente (mestre Liu também dá consultas sobre práticas da medicina chinesa) e pude examinar sua musculatura bem desenhada, sem uma única variz. Admirada, pedi à intérprete, ao final da entrevista, que lhe dissesse que eu o achara muito bonito. Como um sorriso simpático, ele respondeu amável: "Sua mãe a fez mais bonita que eu; comece a praticar tai chi e aos 80 anos estará muito mais bonita do que estou agora..."

Confesso que a vaidade pesou mais que a saúde na minha decisão. Mesmo assim, só encarei o desafio por causa do estímulo de alguns amigos e, é claro, por minha natural curiosidade. Lembro-me de que cheguei cedo à primeira aula e fiquei encantada com o suave balé ensaiado por uma turma de cerca de 12 alunos, com seus movimentos elegantes e leves, que desenhavam círculos no ar. A quietude, as paredes brancas, tudo recendia paz. Acreditei ser muito fácil reproduzir aquela mágica coreografia. Quando entrei em cena, porém, percebi que não era tão simples assim.

Primeiramente fui colocada sentada sobre o chão, acomodada num pequeno tapete, as pernas e coluna retas. A seguir passamos à prática chamada "exercícios dos tendões", que consiste num alongamento através de uma série de oito movimentos suaves. Lá pela quarta ou quinta vez em que eu repetia os exercícios, senti uma dor terrível na virilha esquerda e reclamei. A instrutora, serena, apenas respondeu: "É assim mesmo, vai doer um pouco; se for insuportável, pare por alguns minutos." Fui aguentando o sofrimento, ansiosa pelo momento em que aprenderia o que chamam de "formas", os graciosos movimentos do tai chi. Aí a coisa se complicou para valer, percebi que não tinha o mínimo domínio sobre meu corpo para executar, com a leveza e a lentidão características dessa prática, os movimentos propostos.

Ao final da primeira sessão, pensava firmemente em desistir e na decepção que os amigos, vitoriosos por me convencerem, experimentariam. Fui falar com a instrutora, a mesma que servira de intérprete na minha entrevista, e ela confirmou minhas temíveis sensações. Apesar de exigir aparentemente pouco esforço físico, os bloqueios do corpo seriam gradualmente vencidos; até lá, poderia doer um pouco aqui ou ali.

Insisti. As formas continuaram difíceis, mas o corpo ganhava mais elasticidade e vigor. Consegui chegar à metade da sequência após um ano e meio de prática. Por motivos estruturais, afastei-me no primeiro semestre deste ano, mas tenho programado voltar a praticar a partir deste mês. Os benefícios incontáveis comprovam que o corpo precisa de movimento para funcionar bem; a prática vai sendo assimilada com naturalidade e deixa de representar um sacrifício.

Para os seguidores da linha adotada pelo mestre Liu, todo o trabalho é feito em silêncio, pois embora os movimentos possam parecer "para fora", na verdade também traduzem um momento de profunda introspecção. Nada de musiquinha de fundo ou qualquer som compassado que nos leve a repetir mecanicamente cada uma das formas. Ocorre ali uma perfeita e agradável integração do corpo, mente e espírito. Em resumo, a própria filosofia do tai chi sintetizada em duas palavras: expansão e recolhimento.

Por isso, nos parecem estranhos alguns tipos de exercícios físicos que desvinculam o movimento em si da atividade mental, inibida por sons altíssimos ou marcação estridente do instrutor através de palmas ou gritinhos. Quanto ao espírito, nem se fale: nesses momentos de furor corporal, deve ter saído para dar uma voltinha... Qualquer que seja a sua idade, procure escolher uma atividade que privilegie essa integração, porque, como já dissemos, as três esferas - corporal, mental e espiritual - são, na verdade, uma coisa só. Curta tudo o que lhe agradar, mas lembre-se de que a comunhão desses três níveis dotados de energias diferenciadas é fundamental para que você esteja inteiro.

Corpos fragilizados são excelentes hospedeiros das energias nocivas. Um corpo doente favorece a confusão da mente e torna-se sujeito a ataques psíquicos; medo, inveja, ócio, raiva e outras tantas qualidades mesquinhas assumem proporções descomunais num sistema minado por doenças ou ideias negativas. Sem o confortável suporte do corpo, o espírito não encontra paz. Por isso, adote o prazer, o conforto, a saúde como metas indispensáveis do seu desenvolvimento intelectual e espiritual.

Proponho agora que você tome um copo de água pura, dê uma volta pelo quarteirão respirando a plenos pulmões e medite um pouco sobre como tem tratado esse seu velho (talvez não tão velho...) corpo que perpetua seus ancestrais e descendentes, além de toda garra, graças e beleza herdada da espécie humana. Tenho certeza de que seu espírito revigorado canalizará as bênçãos do Criador, que ficará mais orgulhoso ainda da sua criação.

Para manter o vigor físico

- Beber dois litros de água pura por dia.

- Fazer cinco refeições leves (incluindo dois lanchinhos entre café da manhã/almoço, almo/jantar - pode ser uma fruta, um doce, um iogurte).

- Andar três ou quatro quilômetros todos os dias (de preferência olhando para dentro de você ou trazendo para dentro de si as paisagens de fora).

- Respirar profundamente.

- Dormir o suficiente.




(texto publicado na revista Planeta edição 287 - ano 24 - nº 8 - agosto de 1996)











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