quarta-feira, 29 de julho de 2015

Quanto tempo de vida você escolheu? - Norberto R. Keppe


É muito mais difícil viver que morrer. O ser humano tem um sentido de autodestruição muito pronunciado que, mais cedo ou tarde, o levará à sepultura. Mas, geralmente, o leva bem antes do que deveria.

Hoje em dia, uma nova ciência, a gerontologia, pesquisa os motivos da existência em determinadas regiões de indivíduos extremamente idosos - em contraste com outras, onde se morre muito cedo. Infelizmente se ativeram aos aspectos físicos da questão.

Na Psicanálise, Freud descreveu a existência de um impulso de morte na mente de todo neurótico. Provavelmente, reside aí o motivo principal de seu envelhecimento prematuro.

L. A., nascido na Bahia, veio a São Paulo, para tratar de seu problema de regurgitação. Todo alimento que ingere, volta à boca, e ele acaba expelindo-o. De setenta quilos, emagreceu para quarenta e três. Um fato interessante é que o contraste que toma para tirar as radiografias, segue seu curso orgânico normal. Aliás, é o único líquido que toma com facilidade.

Seu histórico psicopatológico é o seguinte: aso dezesseis anos de idade perdeu o pai, de quem tinha grande dependência. A família passou a ter dificuldades econômicas, e ele foi trabalhar numa mina de chumbo, em outra cidade, fato que o obrigou a morar com uma irmã casada.

Depois de um ano, iniciou o seu processo patológico.

Sua dependência ao pai o levava a procurar um substituto, que encontrou nos médicos que o cuidavam (disse que não queria de modo algum deixar o hospital). E sua identificação com o progenitor o levava ao processo de autodestruição.

Nos hospitais principalmente, encontramos muitos indivíduos com uma problemática de autodestruição notável.

No serviço de alergia, G. F. disse o seguinte: "Minha asma só melhora quando estou numa situação difícil. Por exemplo: certa noite sonhei que ia morrer, e tinha certeza disso. Havia mesmo um prazo de três meses. Pois bem, durante esse tempo estive perfeitamente bem, sem uma crise sequer da doença."

"A tristeza seca os ossos", escreveu Bacon. O indivíduo otimista vive mais tempo e tem maior resistência às doenças, porque tem entusiasmo com as coisas da existência, dando ênfase ao chamado impulso de vida, descoberto por Freud.

Deste modo, a morte deve ser encarada como um problema pertencente mais ao campo psíquico que ao fisiológico.

No entanto, a fase de autodestruição tem uma curva longínqua do completo extermínio. Isto é, no aparecimento de uma moléstia de natureza grave, o indivíduo reage, tem os seus sentimentos de culpa sanados em parte, e procura voltar à normalidade psicorgânica.

A busca que o homem faz da morte, não é dela em si, mas de uma fuga da realidade, isto é, ele quer apenas sair do estado em que se encontra. Quantos indivíduos que tentaram o suicídio e não tiveram êxito, depois ficaram apavorados com o que fizeram. E quantos não tomaram apenas uma atitude teatral?

O neurótico realmente não quer morrer, mas sair do abismo em que caiu e cada tipo de doença o leva a isso. O histérico, por exemplo, quer chamar atenção sobre si. O agressivo, ferir os outros, através da moléstia. O masoquista, encontrar prazer em se diminuir. E, assim, em cada sintoma, existe uma finalidade diferente.

O fim buscado não é a morte, mas as consequências: castigo e punição, mais aos outros que a si mesmo.

A pessoa morre conforme vive, mas o neurótico tem um fim mais dramático, porque não é coerente entre o que deseja e faz.

Durante grande parte de sua existência, não a aceitou, e, agora, que está agonizando, quer viver. Deste modo, no seu íntimo se trava uma luta feroz, que se manifesta nos seus estertores mais prolongados.

A morte do indivíduo equilibrado é serena e aceita porque ele viveu sempre em prol de um ideal, recebeu bem os seus revezes e se sente realizado. Quando o corpo chegou a uma fase de completa decadência, ele, que deu ênfase às produções do espírito, espera tranquilamente o último desenlace, sabendo perfeitamente que isso faz parte do seu plano vital.

Ele foi muito útil, trouxe mais um tijolo, para a construção desse formidável edifício, que é consequência da evolução humana: a civilização, e sente que o seu trabalho foi bem feito.

Certamente, a morte em si não é o grande problema, mas sim o que ela representa, isto é, os fatores concomitantes.

A. M. veio ao tratamento analítico por motivo de suas fobias e medo da morte.

Depois da fase inicial, caiu num período de depressão, no qual esqueceu completamente aquele problema anterior, alegando que o sofrimento com este último sintoma era muito maior, tirando-lhe qualquer preocupação de morrer.

O motivo era uma forte contrariedade afetiva, devido ao afastamento do homem que amava profundamente. Via-se que sua libido estava completamente insatisfeita, levando-a a um desinteresse geral. Deste modo, estava levando a vida como se estivesse morta.

A morte em si pouco significa, porque o moribundo não tem consciência do que lhe vai acontecer. E a pessoa velha está mais do que suficientemente preparada, desde que biologicamente existe o desgaste físico, que inconscientemente é aceito. É o mesmo caso do indivíduo que está sonolento, esperando a hora de dormir.

Psicanaliticamente considerando, não existe morte repentina. Seja num leito de hospital, ou dentro de um automóvel em alta velocidade, existe um período enorme, anterior, de planificação.

E não é preciso ser um grande psicanalista para pressentir a autodestruição do indivíduo. Aliás, muitas pessoas, quando se aproximam de doentes, sentem algo estranho, como se estivessem adivinhando o fim.

O inconsciente sabe mais do que nós, constituindo o maior campo de estudo sobre a personalidade humana. Nós temos obrigação mesmo de, na medida do possível, conhecê-lo - como único meio de assumir controle sobre o próprio destino.

O povo árabe usa da expressão "está escrito", para explicar que, aquilo que acontece, está predeterminado. Aliás, de certa maneira, esse espírito sempre existiu em todos os povos, constituindo uma tentativa de esclarecimento dos próprios impulsos interiores: se meu inconsciente quer assim, nada poderá demovê-lo - a não ser conhecendo-o.

Nós procuramos a morte (inconscientemente) devido à estreiteza de nossos horizontes. Entramos em tantas dificuldades, cometemos tantos desatinos que, afinal, nos refugiamos nela.

Porém, caso tivéssemos os horizontes mais amplos, e os ideais melhor situados, encontraríamos novamente interesse e amor pelas realizações e facilmente chegaríamos aos duzentos anos. "A vida apresenta muito interesse para quem o procura..."

O medo da morte também pode ser analisado segundo o apego que o indivíduo tem pelo seu corpo: se vive em função dos prazeres sensoriais (inadequadamente), é evidente que verá com desespero a perda dessas prerrogativas.

Mas, em todos aqueles que já passaram pelo perigo de perder suas vidas, parece que a impressão foi bem diferente do que imaginamos.

Um motorista inglês vinha em alta velocidade por uma estrada, coberta pelo nevoeiro, quando foi de encontro à traseira de um caminhão. Viu-se como que pairando no ar, e contemplando o próprio corpo destroçado. Olhava-o com certa pena. De repente sentiu sangue nas vistas e perdeu aquela visão. Acordou depois de uma semana num leito de hospital, tendo sido "milagrosamente" salvo.

Os parapsicólogos modernos acreditam na possibilidade de o psiquismo se distanciar do corpo, à semelhança mais ou menos com o fenômeno da bilocação, acontecido com alguns seres privilegiados.

Para crentes e ateus, a morte apresenta duas espécies distintas de dificuldades: o de sofrer no último momento e as consequências posteriores, caso haja sobrevivência do psiquismo. Aqui, entramos num segundo aspecto da neurose, que a terapêutica analítica ousou ignorar por muitos anos, e agora ocupa posição importantíssima nas escolas modernas.

Freud e seus adeptos mais fanáticos aboliram, desse campo, todas as manifestações do psíquico, no sentido espiritual. No neurótico, muitas vezes, não é tão primordial saber a origem de um  trauma psicológico, como tomar consciência de uma nova realidade - porque a psicanálise transgrediu do terreno puramente terapêutico para o das realizações humanas.

Uma pessoa que faça análise, hoje em dia, pode visar muito mais ou seu aperfeiçoamento do que propriamente sanar um sintoma. Deste modo, temos que curar o indivíduo do seu passado, bem como dar-lhe uma visão de vida que possa levá-lo a aceitar tranquilamente o magno problema da morte - e a ciência analística já é capaz disso.




(texto publicado no jornal Stop nº 83 - ano VIII)

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