sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A causa nossa de cada dia - Luciana Alvarez


O que é preciso para mudar o mundo? Sem nenhum poder especial, com pequenos gestos na rotina, pessoas comuns estão semeando revoluções - e você pode se juntar a elas

Quando Mathias Fingermann começou, ainda adolescente, a andar de bicicleta pelo bairro de Pinheiros, em São Paulo, pedalar era apenas um meio de transporte. Hoje, aos 28 anos, ele faz da bike uma escolha consciente em sua luta por uma cidade mais humana, com menos poluição e congestionamentos. Nunca teve carro e nem pretende comprar. "De bicicleta, você não fica fechado dentro do veículo, tem um contato mais próximo com a cidade."

A nova visão sobre a mobilidade urbana veio a partir do encontro com ativistas do pedal. "Em 2003, uma amiga me levou a uma bicicletada, um evento que reúne ciclistas para festejar a bicicleta, mostrar que ela também tem direitos", conta. Nessas manifestações, que acontecem em vários lugares do Brasil e do mundo, tradicionalmente na última sexta-feira de cada mês, dezenas, às vezes centenas de ciclistas se juntam para pedalar em bloco nas ruas, ocupando seu lugar e tomando o dos carros. Querem mostrar que bicicleta também é um meio de transporte, exigir mais estrutura para pedalar na cidade e respeito por parte dos motoristas.

A cada encontro, Mathias voltava para casa mais inspirado. "A bike é um jeito de deixar o espaço público mais humano. "Uma hora, só pedalar já não bastava: a turma viu que precisava se organizar para propor ações e cobrar atitudes do governo. Mathias ajudou então a fundar uma associação sem fins lucrativos, a Ciclocidade, que desde 2009 atazana a prefeitura para deixar São Paulo mais "pedalável" e ajuda a espalhar a cultura da bike. E ainda ganhou um novo projeto voluntário: nos fins de semana e à noite, Mathias é mecânico na oficina Mão na Roda, que ensina as pessoas a fazer a manutenção da bicicleta.

Fazer das escolhas de vida uma filosofia, como foi com seu meio de transporte, tornou-se natural para Mathias. Ele tem para si, por exemplo, que é melhor para o meio ambiente se a gente comprar o mínimo possível e reduzir ao máximo o que joga fora. "Na nossa sociedade de consumo, é difícil zerar o lixo. Mas reduzi em dois terços o que produzia", conta. Na hora das refeições, não come carne nem produtos industrializados; colhe o que cultiva em sua horta e quer saber a origem de tudo o que leva à boca. "Prefiro o que vem da agricultura familiar e do pequeno produtor, porque acredito no desenvolvimento local." Sua opção de trabalho também é parte desse pacote: Mathias é professor de educação infantil. "Os alunos sabem das minhas escolhas. Espero que eu sirva de exemplo para eles."

Dá pra dizer que uma vida mais sustentável é a causa de Mathias. Tem gente que prefere cuidar de animais abandonados, contribuir com o hospital do câncer ou ser voluntário na igreja. Há tantas lutas que valem a pena quanto há problemas no mundo. Ajudar faz parte do instinto humano - principalmente quando se trata do grupo a que pertencemos, diz a ciência. Mas a forma de contribuir está mudando. Doações em dinheiro e trabalho voluntário não são mais as principais maneiras de engajar-se em uma causa. Dedicar-se a fazer o bem tampouco precisa ser um plano para a aposentadoria, quando sobrar tempo. Engana-se quem pensa que, para provocar real impacto, é preciso ser um líder de palanque, estar na linha de frente das manifestações, ter conexões políticas, carteira recheada ou conhecimentos extraordinários. As pequenas revoluções estão sendo feitas por pessoas comuns, nas atitudes da vida cotidiana.

Dentro da sua casa e do seu alcance, colaborando com quem pensa parecido, sem radicalismos, Mathias fez suas escolhas pelo bem comum e, assim, influencia mais gente a fazer o mesmo. Essa tendência de se dedicar à vida prática, com gestos pequenos no lugar de lutas por grandes ideais, tem sido chamada de micropolítica ou microfilantropia. "Vemos um deslocamento da prática política tradicional para outros setores da sociedade, como as ONGs e os movimentos sociais", diz Nelson Pedro-Silva, professor da Universidade Estadual de São Paulo especialista em psicologia moral e ética. Ele explica que vários fatores do passado e do presente contribuem para esse fenômeno, como os longos anos de ditadura militar brasileira e o desgaste das lideranças políticas atuais. "Os partidos não estão conseguindo atrair a juventude. É como se, nesse momento, estivessem fora de moda."

Mas, ainda que duvide dos políticos, há quem bote fé nas próprias atitudes. São pessoas como Mathias, que acreditam que, mesmo em uma escala pequena, podem promover transformações - e estas, sim, são as mais frutíferas e duradouras sementes da mudança. "Se um cidadão começar a varrer a calçada da sua casa, talvez não evite a próxima enchente. Entretanto, seu comportamento pode influenciar os vizinhos e servir de modelo para as crianças, de tal maneira que, um dia, todos vão varrer a rua também", diz Pedro-Silva. "E, assim, além de minimizarmos os riscos de uma enchente no futuro, teremos a consciência de que um país não depende apenas dos governantes, mas, principalmente, dos governados - de todos nós."

Caminho sem volta

Casada, mãe de duas adolescentes, já com mais de 40 anos, Clelia Maria Rossi também decidiu fazer sua parte. "Eu era professora de biologia, mas sempre tive vontade de trabalhar com questões ambientais. Gostava de pôr a mão na massa", conta ela sobre os motivos que, há quase dez anos, a levaram a entrar para a ONG SOS Mata Atlântica. Até hoje, ela dá aulas voluntárias de educação ambiental em escolas de periferia, mas esse foi apenas o primeiro passo.

Clelia logo percebeu que queria mais. "As aulas aos fins de semana eram pouco. Na ONG, a gente fala sobre uso da água, lixo, reciclagem. Tudo muito importante. Mas o contato direto com a flora e a fauna ficava em segundo plano", explica. Ao fazer cursos de formação na entidade, a professora descobriu qual seria seu caminho: ter uma reserva particular. Atrás de seu propósito, Clelia comprou, em 2006, um terremo de 6 hectares de mata atlântica em Juquitiba, na região metropolitana de São Paulo, e começou a se dedicar a um novo desafio: preservar uma área de floresta nativa. "Só assim eu poderia educar e também pesquisar, administrar, vivenciar."

Dois anos e muita papelada depois, a terra foi reconhecida como Reserva Particular do Patrimônio Natural, título que a isenta de alguns impostos em troca do compromisso de preservação. No começo, Clelia viajava a Juquitiba uma vez por semana. Há um ano e meio, mudou-se de vez com o marido para uma casa perto da reserva - as filhas, hoje adultas, ficaram na capital. Agora, a meta é habilitar o lugar para receber animais silvestres resgatados pelo Ibama. "É o meu sonho de faculdade. Muitas espécies não têm onde ser soltas e acabam em zoológicos ou locais inseguros, onde podem ser caçadas."

Para concretizar mais esse plano, Clelia vai ter de superar outra lenta burocracia. No cotidiano da reserva, as dificuldades são mais práticas, como vigiar a área para que ninguém derrube árvores ou tente caçar. Como estratégia, a bióloga envolveu toda a comunidade. "Uma das primeiras coisas que fiz foi procurar as escolas próximas, para explicar às crianças o que é a área. Mostrei que não é minha, mas de todo mundo. Agora elas, os pais e todos os vizinhos ajudam a fiscalizar. "Tanto trabalho, em vez de provocar fadiga, parece dar cada vez mais energia a Clelia. "Sou apaixonada, por isso não me canso."

Este é um "perigo" das causas: dificilmente alguém consegue parar no primeiro ato. Um resultado empolga para mais um plano. Uma questão levanta várias outras. Quando vai ver, a pessoa já adotou meia dúzia de cachorros de rua - ou criou uma reserva e mudou totalmente de vida, como Clelia. Às vezes a luta parece uma tarefa tão interminável quanto enxugar gelo. Mas, não raro, é o propósito que dará aquele sentido maior que a vida precisa para ser plena. Pesquisadores da felicidade, como o psicólogo americano Martin Seligman, são unânimes em concluir que o caminho para a realização passa por algum tipo de engajamento. Para eles, uma boa vida não depende só de momentos de alegria, porque eles são passageiros. É preciso ir mais fundo.

A fórmula da felicidade, costuma dizer Seligman, tem três ingredientes básicos. Um: conviver com uma rede de pessoas queridas, que não precisa ser apenas nossa família. Dois: ter um propósito que seja maior do que a própria existência e que dê a sensação de que estamos deixando algo para o mundo. Três: descobrir uma atividade tão envolvente, que nos faça perder a noção do tempo. E praticar uma causa apaixonante pode ser a forma de colocar tudo isso no dia a dia.

Uma por todos

O que os estudiosos afirmam na teoria, Maria Aparecida Canhadas Bacheschi, a Dona Cidinha, descobriu na prática. Aos 83 anos, com um bom humor inabalável e uma disposição idem, ela é conhecida no bairro onde mora, a Pompéia, em São Paulo, como a rainha dos abaixo-assinados. Faz mais de quarenta anos que ela passou o seu primeiro, para a prefeitura tomar atitudes contra pichadores. Deu certo. Foi chamada a encabeçar outras listas pelas mais variadas causas, desde fechar uma casa noturna barulhenta em prol do sono da vizinhança, até exigir a abertura de um posto de saúde na região. Ela jura que a coisa toda é muito simples: é só escrever um cabeçalho explicando o pedido e tirar muitas cópias. Depois é que vem o trabalho: conseguir adesão. Para isso, ela bate de porta em porta e recorre à entradas de bancos, mesas de bares, mercados, feiras livres e onde mais  tiver gente, pedindo assinaturas e RGs.

O dom de batalhar pelo bem comum vem da vida inteira. "Desde pequena sou assim. Morava em São Simão, no interior de São Paulo, e passava de casa em casa recolhendo dinheiro para a igreja, colaborava nas festas", lembra. Casou-se, cuidou de quatro filhos, teve sete netos e passou a dedicar-se aos abaixo-assinados depois que ficou viúva, em 1976. Quatro décadas depois, já perdeu a conta de quantos liderou. Além de juntar as assinaturas, faz barulho para ver os pedidos realizados: ameaça panelaço na prefeitura, escreve para o governador, fala com jornalista. E nunca se dá por satisfeita. "Uma coisa que até hoje não consegui foi trazer um Procon para o bairro. Cada vez dão uma desculpa. Mas não desisti, não. Uma hora vai dar certo."

Dona Cidinha tem por princípio não deixar nenhum tipo de má vontade lhe abater. "Encaro as dificuldades com humor. Uma vez, colhendo assinaturas, um homem foi grosseiro, perguntou quanto eu estava ganhando para fazer aquilo. Respondi que ganhava tanto, mas tanto, que era impossível somar. Ele ficou sem graça", lembra. Abraçando causas, ela encontra esperança no futuro e motivos para levantar da cama todos os dias. "Passei um tempo mais quieta, cuidando de um problema de saúde, mas já estou preparando um abaixo-assinado para a construção de um hospital odontológico aqui no bairro", confabula. Nada de pensar em aposentadoria. "Se eu não fizesse isso, seria uma pessoa morta, mesmo estando viva."

Como pode uma dona de casa que não conhece poderosos, que não ganha nada com isso, fazer tanta coisa? E a resposta é: porque Dona Cidinha nunca esteve sozinha. Ela tem o talento de ver o que pode melhorar - e a coragem de ser a primeira a levantar e fazer alguma coisa. Mas suas conquistas também tiveram a força de milhares que assinaram embaixo das suas causas (literalmente!). São a prova de que uma única pessoa determinada faz a diferença, e muitas juntas fazem uma revolução. Ao conseguir engajar e influenciar os outros, a capacidade de realização da causa, ainda que pequena, cresce, explica o sociólogo Guilherme Falleiros, doutor em antropologia social pela Universidade de São Paulo. "A força das pessoas reunidas é maior do que a soma da força de cada uma, individualmente."

Contagiadas pelos resultados das ações coletivas, muitas pessoas encontram seus próprios focos para agir. "Cada aspecto da vida cotidiana e pessoal", diz Falleiros, "pode ser o canal para o desenvolvimento de uma causa importante. Moradia, alimentação, educação, diversão... Tudo merece nossa atenção e nossa luta. "É mais fácil escolher uma bandeira - e ser feliz com ela, a despeito do esforço - quando o tema já faz parte dos nossos interesses e da nossa rotina.

Dona Cidinha, por exemplo, sempre se preocupou com a questão da saúde, razão de muitos de seus abaixo-assinados. Recentemente, ela esteve em um posto de saúde público que ajudou a criar, fazendo exames cardíacos. O médico disse que o coração dela estava ótimo, que ela iria viver mais de 100 anos. Satisfeita com a notícia, Dona Cidinha respondeu: "E o senhor sabe por quê? É porque fico feliz por vir aqui e ser tão bem tratada, assim como fico feliz ao ver cada pessoa que sai daqui com um bom atendimento. O senhor está olhando para um coração feliz".



(texto publicado na revista Sorria para ser feliz agora nº 39 - ago/set de 2014)







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