O câncer de boca é considerado um problema de saúde pública em todo o mundo. A última estimativa mundial apontou que ocorreram 300 mil casos novos e 145 mil óbitos em 2012 por câncer de boca e lábio. Desses, 80% ocorreram em países em desenvolvimento. A ocorrência de câncer de laringe foi de cerca de 160 mil casos novos por ano, sendo responsável pelo óbito de 83 mil pessoas anualmente. A incidência é maior em homens com idade acima dos 40 anos. O uso de tabaco é o principal fator de risco em ambas as condições. Associado ao álcool, esse risco é potencializado. Outros fatores são: histórico familiar, má alimentação, situação socioeconômica desfavorável, inflamação crônica de laringe causada pelo refluxo gastroesofágico, HPV e exposição a produtos químicos, pó de madeira, fuligem ou poeira de carvão e vapores de tinta. O câncer de laringe, quando diagnosticado em estágios iniciais, possui um bom prognóstico, com alto percentual de cura (de 80% a 100%).
Nas últimas décadas, a evolução da tecnologia nas áreas da saúde colaborou para o diagnóstico cada vez mais precoce das doenças e para o desenvolvimento de tratamentos multimodais com melhores resultados e menos morbidade, elevando assim a qualidade e a expectativa de vida da população em geral. Muito desse resultado deve-se à instituição de equipes multidisciplinares na atenção a esses pacientes.
O tratamento do câncer de cabeça e pescoço está se tornando cada vez mais complexo, em termos clínicos, biológicos, sociais, administrativos e econômicos. Muitos cenários clínicos podem envolver várias especialidades, incluindo a cirurgia médica, a oncologia, a radioterapia e a quimioterapia, além da imaginologia diagnóstica, a patologia, a nutrição, a fonoaudiologia, a odontologia, a fisioterapia e a psicologia. A variedade de especialistas, combinando as expertises e os conhecimentos, melhora as decisões relacionadas ao tratamento e, consequentemente, ajuda o paciente.
De acordo com estudos publicados recentemente, 90% dos pacientes com câncer de cabeça e pescoço apresentam-se em estágio inicial ou têm a doença localmente avançada, enquanto os 10% restantes têm estágio metastático. A chance de cura ocorre em 50% dos casos. Entre 80% e 90% dos casos na fase inicial da doença são tratados com radioterapia e/ou cirurgia apenas. Por outro lado, os estágios da doença avançada localmente exigem uma abordagem multimodal, com cirurgia, radioterapia e quimioterapia para alcançar taxas de cura de 40% a 50%. Os casos recorrentes ou com metástase são geridos com a quimioterapia sistêmica, embora 15% dos pacientes com doença localmente recorrente podem ter reirradiação ou cirurgia. Quando o tumor é curável com a ressecção, pode conferir morbidade e comprometimento significativo na qualidade de vida, por causa da complexidade anatômica das estruturas da cabeça e do pescoço, boca, nasofaringe, orofaringe, hipofaringe e laringe. Nesses casos, uma abordagem preservativa do órgão é favorecida com radioterapia ou quimioterapia simultânea (CRT).
Em uma filosofia semelhante, embora os cânceres em estágio inicial da cavidade oral ou nasal possam ser curados com cirurgia sem prejuízo funcional significativo, uma estratégia não-cirúrgica com CRT ainda é possível com taxas de cura equivalentes. Essa abordagem é conhecida como poupador cirúrgico. A mitigação dos efeitos colaterais por cirurgia, radioterapia e quimioterapia é de vital importância para evitar complicações agudas e crônicas.
As técnicas cirúrgicas estão evoluindo em direção a abordagens menos invasivas, enquanto procedimentos reconstrutivos são usados para alcançar um melhor resultado funcional e estético. As técnicas de radioterapia são fracionadas, com intensidade modulada, e se concentram apenas no órgão de interesse, preservando áreas circunvizinhas. Embora a quimioterapia continue a ser uma parte integrante de uma estratégia da multimodalidade, os esforços de investigação estão na identificação de agentes orientados, mais eficaz e, ao mesmo tempo, menos tóxico.
Baseado na literatura, a Clínica Multidisciplinar da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP fornece atendimento a pacientes oncológicos e transplantados com foco na pesquisa e extensão de serviços à população, com o objetivo de verificar a efetividade das terapias propostas e a melhora da qualidade de vida dos pacientes.
A clínica iniciou suas atividades em março de 2013, na gestão do diretor da FOB José Carlos Pereira. Atualmente conta com corpo clínico formado por quatro docentes da FOB, dois cirurgiões-dentistas, quatro fonoaudiólogas, nutricionista e fisioterapeuta. Semestralmente ela capacita recursos humanos por meio de uma disciplina de pós-graduação. Esses alunos geraram oito trabalhos apresentados em eventos, uma publicação em anais e um artigo premiado.
No primeiro ano de atendimento, 69 pacientes iniciaram seus tratamentos, totalizando 1.195 procedimentos, que incluíram tratamentos odontológicos de suporte (cirurgias, endodontia, periodontia e laserterapia), fonoaudiológico, nutricional e fisioterapêutico. Desses pacientes, 39% foram diagnosticados com câncer de cabeça e pescoço e 61% com outros cânceres, todos encaminhados pelos centros de referência do Hospital Amaral Carvalho, de Bauru, e do Hospital Estadual de Bauru. Desse total, 81% foram tratados com quimioterapia, 53% com radioterapia e 63% cirurgicamente.
A laserterapia é uma das modalidades que, de acordo com evidências na literatura, atua na prevenção e no alívio da mucosite bucal, complicação resultante dos agentes quimioterápicos utilizados no tratamento de alguns cânceres (como mama e intestino) e de pacientes com transplantes de medula óssea. A laserprofilaxia e a laserterapia têm sido cada vez mais utilizadas neste grupo de pacientes para prevenção e tratamento da mucosite oral.
A abertura da linha de pesquisa em pacientes oncológicos, associando a prestação de assistência odontológica a esse grupo de pacientes na Clínica Multidisciplinar da FOB, tem permitido o crescimento da pesquisa na área, além de auxiliar da pesquisa na área, além de pós-graduação e graduação quanto ao manejo odontológico especial a esses pacientes. Além disso, permite à população oncológica acesso a terapêuticas antes não existentes na cidade e na região de Bauru.
(texto publicado no Jornal da USP 1.038 - ano XXX - 8 a 21 de setembro de 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário