segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Algo muito errado - Denis Russo Burgierman


Dezesseis meses atrás, minha filhota Aurora nasceu, em uma noite de gritos e lágrimas que jamais esquecerei. Dois dias depois, veio outra noite que também não conseguirei esquecer: minha cidade, São Paulo, saiu inteira às ruas para protestar contra o aumento das passagens do transporte coletivo. Eu, inclusive. Na noite após sairmos do hospital, pedi licença à mãe da Aurora, beijei o bebê e peguei minha bicicleta para ir ver a manifestação de 17 de junho. Foi lindo. Naquela noite sonhei que o Brasil todo ia conseguir se entender e enfrentar seus problemas: a péssima qualidade dos serviços públicos e privados, o modelo destrutivo de manejo ambiental, o sistema de educação tosco e injusto, a dificuldade de dialogar, o mau trato da coisa pública.

Quase um ano e meio depois, minha pequena Aurora cresceu, aprendeu a andar e também a falar. Já meu país vai de mau a pior. As manifestações, que começaram em um gigantesco congraçamento nacional, foram se desenrolando em um clima cada vez mais raivoso e violento. Depois de uma ampla queima de dinheiro futebolístico, que se encerrou com uma goleada humilhante, que todo mundo parece querer esquecer, desembocamos em uma eleição incrivelmente pautada pelo ódio e pela desqualificação do rival.

O clima entrou em colapso. E a cidade onde nasci e cresci - e moro até hoje -, que já foi famosa pela garoa, está parecendo o deserto do Saara: quente e seca. A água já sai suja da torneira, quando sai, e os hospitais estão lotados de gente intoxicada. Os políticos, de situação e oposição, olham para a crise ambiental com um tedioso desinteresse - só têm ouvidos para seus marqueteiros. Enquanto isso, uma tribo indígena inteira promete suicídio coletivo caso se confirme seu despejo, para dar espaço a uma hidrelétrica. Ninguém dá a mínima para isso. Estamos todos ocupados demais banindo nossos ex-amigos de nossas redes sociais.

Olho para Aurora constrangido. Tem algo muito errado no país que estou deixando para ela. Ela me olha combalida. Como tanta gente em meio ao clima louco, tendo que beber água imprópria, ela pegou uma virose e acordou hoje com febre. Escrevo este texto antes do segundo turno da eleição, dentro de um ódio generalizado. Daqui a uma semana, alguns vão celebrar a vitória eleitoral. Que saibam que não há muito para celebrar - não ainda. Haverá, quem sabe, no dia em que formos de novo capazes de nos entender e de construir juntos um país para os nossos filhos.



(texto publicado na revista Vida Simples nº 153 - dezembro de 2014)




Nenhum comentário:

Postar um comentário