O escritor italiano diz que a internet dá voz a todo tipo de opinião desqualificada - e que o jornalismo, tema de seu novo romance, deve atuar como um filtro para o que se lê na rede
O Castello Sforzesco, em Milão, preserva tesouro da arte italiana, como a Pietà Rondanini, de Michelangelo. Um dos sóbrios edifícios residenciais em frente ao castelo abriga outro tesouro italiano: Umberto Eco, filósofo, crítico literário e romancista traduzido em mais de quarenta idiomas. O autor de O Nome da Rosa, romance ambientado na Idade Média que vendeu mais de 30 milhões de exemplares, lançou neste ano Número Zero - que chega ao Brasil nesta semana, pela Record - , um retrato crítico do jornalismo subordinado a interesses políticos. Na casa milanesa, onde conserva uma biblioteca de 30 000 livros (há outros 20 000 em sua residência em Urbino), Eco, 83 anos, recebeu VEJA para falar de jornalismo, internet, conspirações e, claro, literatura.
Foi um estrondo a sua declaração, em uma cerimônia na Universidade de Torino, de que a internet dá voz a uma multidão de imbecis. O que o senhor achou da dimensão que o assunto tomou?
As pessoas fizeram um grande estardalhaço por eu ter dito que multidões de imbecis têm agora como divulgar suas opiniões. Ora, veja bem, num mundo com mais de 7 bilhões de pessoas, você não concordaria que há muitos imbecis? Não estou falando ofensivamente quanto ao caráter das pessoas. O sujeito pode ser um excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende.
Mas a internet tem seu valor, não?
A internet é como Funes, o memorioso, o personagem de Jorge Luís Borges: lembra tudo, não esquece nada. É preciso filtrar, distinguir. Sempre digo que a primeira disciplina a ser ministrada nas escolas deveria ser sobre como usar a internet: como analisar informações. O problema é que nem mesmo os professores estão preparados para isso. Foi nesse sentido que defendi recentemente que os jornais, em vez de se tornar vítimas da internet, repetindo o que circula na rede, deveriam dedicar espaço para a análise das informações que circulam nos sites, mostrando aos leitores o que é sério, o que é fraude. Será que os jornais estão prontos para isso? A crítica da internet exige um novo tipo de expertise, mesmo para os jornais. E isso é muito importante para os jovens, pois eles não têm, aos 15, 16 anos, os conhecimentos necessários para filtrar as informações a que têm acesso na rede. Ora, assim como quem lê diversos jornais acaba aprendendo a distinguir as abordagens distintas de cada um deles, os jovens hoje precisam aprender a buscar essa variedade de abordagens nos sites que frequentam.
O jornalismo - que é tema de seu novo romance, Número Zero - conseguia desempenhar melhor essa tarefa crítica antes da internet?
A crise do jornalismo começa nos anos 50, com a televisão. Antes disso, os jornais diziam, pela manhã, o que havia acontecido no dia anterior, ou até mesmo na noite anterior. Os próprios nomes indicavam um pouco isso: o italiano Corriere della Sera, o francês Le Soir, o inglês Evening Post. Depois da televisão, os jornais passaram a dizer, pela manhã, o que as pessoas já sabiam. Eles deveriam ter mudado - e não mudaram. Mudar, naquele contexto, significaria reduzir o número de páginas, mas, em vez disso, os jornais ampliaram o tamanho, sobretudo por razões de publicidade. Ora, como preencher esse espaço? Três possibilidades. Primeira: aprofundar a informação através de análises e comentários. Alguns jornais foram por esse caminho, com maior ou menor êxito, como o New York Times. Segunda possibilidade: a pura fofoca, que foi o caminho de certos jornais britânicos. Terceira: a repetição das mesmas notícias. Há dois dias, um garoto sul-americano atacou um controlador de trem aqui em Milão com um machado. É uma informação que pode ser dada em uma pequenas coluna. No entanto, você olha os jornais e lá estão páginas inteiras sobre o assunto. Pode até ser divertido, enquanto tomo o café, ler mais detalhadamente uma matéria mais longa. Acredito que Hegel estava certo: a leitura dos jornais de manhã é a oração do homem moderno.
Em alguns de seus romances anteriores, como O Pêndulo de Foucault, as teorias da conspiração estavam no centro da trama. Em Número Zero, no entanto, o senhor faz um uso diverso das conspirações. Por quê?
Há um personagem paranoico, Braggadocio, que constrói a sua própria conspiração, com um elemento inventado: Mussolini não teria sido executado. Fora isso, todos os fatos que relato em Número Zero pertencem à categoria das conspirações reais. A característica de uma conspiração verdadeira é que ela é invariavelmente descoberta. Houve uma conspiração para matar Júlio César, e todos sabemos. O perigo está nas conspirações falsas, pois você não consegue desmenti-las - mas elas se prestam à manipulação: quem quiser tirar proveito delas poderá montar contra-conspirações muito reais. Foi o que Hitler fez, propaganda a falsa conspiração dos judeus, dos Protocolos dos Sábios de Sião.
As conspirações de Número Zero, então, são fatos históricos?
Todos perfeitamente descobertos. Ainda é difícil saber quem era culpado, mas ninguém nega hoje, por exemplo, o plano do Golpe Borghese (golpe de direita desbaratado na Itália nos anos 70). O que me surpreende nos fatos todos que eu relato no livro não é que eles tenham realmente acontecido, mas sim o modo como o país inteiro aceitou tudo passivamente. Essas informações entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Ficamos sabendo de todas essas coisas e ninguém se desesperou.
"Somos um povo de punhais e venenos, estamos vacinados", diz uma das personagens a certa altura. O problema está nessa resignação, então?
Sim, essa é a tragédia. No meu livro, falo da tragédia da história recente da Itália, mas acho que consegui sugerir que é um problema que diz respeito a outros países também. É, de cerra forma, a memória da mídia e o modo como ela funciona: o que é publicado com escândalo hoje dissolve-se nos próximos dias. Pegue um exemplo célebre: durante algum tempo, os jornais exploram continuamente escândalos que envolvem pedofilia. Depois de certo tempo, o assunto começa a desaparecer, até que nenhum veículo tem mais nada a noticiar sobre o assunto. Os pedófilos deixaram de existir? Certamente não, mas nenhum jornal pode insistir nas mesmas notícias por muito tempo. Então, os jornais são obrigados a produzir a perda da memória, criando, assim, um presente eterno em que o passado é constantemente esquecido.
O personagem do comendador Vimercate, o dono do jornal usado para escusos fins políticos em Número Zero, é baseado no ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi?
Essa é uma pergunta que me foi feita em todas as entrevistas. Veja bem, o mundo está repleto de tipos como o comendador Vimercate. Rupert Murdoch, por exemplo? Obviamente, é possível encontrar certas analogias com Berlusconi, ainda que ele seja muito mais importante e mais esperto que o comendador Vimercate. O problema é que, sempre que se têm, como é o caso da Itália, jornais que não pertencem a um grupo exclusivamente dedicado à área de comunicação - a exemplo da família Ochs Sulzberger, do New York Times -, o jornalismo e a informação saem prejudicados. Tomemos um episódio recente: acabaram de revelar que na direção do Corriere della Sera há industriais da Fiat. É quando percebemos que o mundo está cheio de comendadores.
A internet é um meio propício à divulgação de teorias conspiratórias. Isso muda algo na consideração do tema em suas obras de ficção?
Sempre tive a convicção de que escrever um livro - um romance, em particular, mas qualquer livro, na verdade - é construir seu próprio leitor, é dizer "você deve se tornar isto". Mesmo que isso seja, como é de fato, impossível. Depois de ter escrito O Pêndulo de Foucault, que era uma representação grotesca desses planos conspiratórios e de supostas sociedades secretas, recebi inúmeras cartas de pessoas apresentando-se como "Grão-Mestre Templário". Ou seja, você terá sempre alguns leitores malucos. Não há como evitar: você pode escrever sobre conspirações falsas de um modo paródico ou grotesco, e mesmo assim certos leitores pensarão que elas de fato existem, e dizem: "É exatamente assim, eu sempre soube". A internet não alterou isso substancialmente. No fundo, o que o escritor pode fazer é preparar bem seu livro, oferecer sua crítica, e o resto está nas mãos de Alá.
Número Zero tem pouco mais de 200 páginas. O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault ficam ao redor de 600. Um romance curto o obriga a mudar seu estilo e sua estratégia narrativa?
Gosto de dizer que todos os meus romances anteriores poderiam ser comparados a uma sinfonia de Mahler, ao passo que este agora é uma composição de jazz de Charlie Parker. Tento criar um estilo adequado ao tema e à ambientação histórica de cada romance. Por exemplo, em A Ilha do Dia Anterior, ambientado no século XVII, tentei criar uma linguagem barroca, elaborada. Já em Número Zero, eu estava tentando assimilar o ritmo rápido e sincopado do jornalismo. Fui como que instado pelo próprio tema do romance a adaptar o estilo a suas exigências: diálogos curtos, sem descrições. Repare que até as referências à linguagem, no romance, são referências ao estilo jornalístico, às frases feitas, ao modo de induzir ou enganar sutilmente o leitor. A virtude de um romance é que é ele que decide quando chegou o momento de parar. Chega um instante em que, apesar de você querer continuar a contar a história, desenvolvê-la ou desdobrá-la, o romance faz o serviço de se impor e dizer: 'Chega, pare por aqui". Número Zero me disse para parar onde parei.
No livro, o fascismo de Mussolini é uma sombra sobre a história italiana do pós-guerra. Qual é a cara atual do fascismo?
O fascismo clássico, representado por Mussolini, desapareceu. Mas Número Zero é dominado pelo sentimento do retorno do que eu chamei de "fascismo eterno". E isso está associado a diversos aspectos da política contemporânea. A atitude política da Liga Norte, discriminatória e racista, é uma nova forma de fascismo. Trata-se de uma questão de atitude política mais ampla do que a experiência histórica de Mussolini, e podemos encontrá-la em diferentes contextos históricos. Veja o Estado Islâmico, que eu chamo de o novo nazismo: querem aniquilar outras etnias, impor um credo, conquistar o mundo. Nunca nos livramos permanentemente dessa atitude.
Pela natureza dos temas que o motivam, o volume perdido da Poética de Aristóteles em O Nome da Rosa, ou a discussão sobre a doutrina filosófica conhecida por nominalismo, o senhor teria tudo para ser considerado um "escritor para escritores". No entanto, mesmo excessivamente intelectualizado, seu primeiro romance passou dos 30 milhões de cópias vendidas. Como o senhor explica esse fato?
Quando terminei O Nome da Rosa, eu pensei em fazer uma pequena edição caprichada de 3 000 ou 4 000 exemplares. Aí meu editor leu o romance e percebeu que o livro poderia ter outro alcance - e o resto é história. Bem, há, de fato, escritores que escrevem para outros escritores. Digamos, Finnegans Wake, de James Joyce, é claramente um livro para escritores ou fanáticos por literatura. Hoje, Julian Barnes, entre outros, é um escritor para escritores. Mas há escritores que escrevem para todas as pessoas. Dante Alighieri escreveu para ser lido por todos. Há essa famosa história, relatada por Giovanni Boccaccio, segundo o qual Dante teria ouvido um ferreiro que, enquanto trabalhava, recitava seus versos. Esse ferreiro era certamente iletrado. No entanto, a Divina Comédia o alcançou. Balzac escrevia para todo tipo de leitor. Tolstoi, a mesma coisa. Encontrei-me, então, em muito boa companhia quando descobri que eu também estava escrevendo para todas as pessoas.
(texto publicado na revista Veja edição 2432 ano 48 - nº 26 - 1º de julho de 2015)
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