Nicholas Winton, considerado o "Schindler britânico", salvou centenas de crianças durante a Segunda Guerra Mundial. Seu feito, entretanto, só foi reconhecido décadas depois, quando sua história foi resgatada pela esposa
Nicholas Winton completou 106 anos de vida em 19 de maio deste ano. Poderia ser seu maior feito. Porém, este inglês nascido em Londres escreveu seu legado em exatos nove meses de sua longeva existência. Entre dezembro de 1938 e agosto de 1939, período que antecedeu a eclosão da Segunda Guerra Mundial, ele organizou uma operação de resgate que salvou 669 crianças da morte - a maioria delas judias - pelo Exército de Hitler. Hoje, estima-se que mais de 6 mil pessoas devam suas existências ao esforço do inglês, todas descendentes daquele grupo. Por sua conduta, Nicholas ganhou a alcunha de "o Schindler britânico", referência a Oskar Schindler, industrial alemão que salvou 1,2 mil judeus durante o Holocausto, retratado no longa A Lista de Schindler (1993).
Antes de a guerra ser declarada, Nicholas, com 29 anos, vivia em Londres, onde trabalhava como um promissor operador da bolsa de valores. As notícias que mais chamavam sua atenção eram a respeito da ocupação alemão na antiga Checoslováquia (dissolvida, desde 1993, em dois países independentes, a República Checa e a Eslováquia). Ele também sabia da crescente violência nazista contra os judeus, quando um amigo sugeriu que passassem as férias em Praga, capital da então Checoslováquia. Lá, visitou dois campos de refugiados e ficou tocado pelas péssimas condições de centenas de famílias. A ideia de encontrar um meio de resgatar as crianças e levá-las para países que não estavam sob o domínio alemão veio a seguir. O ponto mais curioso dessa história é que Nicholas nunca contou a ninguém sobre o episódio. Quase 50 anos se passaram até que sua mulher, Grete, encontrar, por acaso, uma caixa no sótão da casa onde morava com o marido, repleta de fotos de crianças, uma longa lista de nomes e endereços, além de cartas para seus pais. Nicky já era um senhor de 70 anos. "Não é que eu tenha guardado segredo, só não falei daquilo. Eu não tinha o que dizer sobre o que fiz", justificou ao Fantástico.
Salvador de crianças
Em 1º de outubro de 1938, as tropas alemãs marcharam pelas regiões recém-anexadas, intimidando as populações locais, que temiam pelo início da guerra. Nicholas sabia que muitos não tinham como sair das cidades ocupadas, mas tentavam encontrar maneiras de tirar, ao menos, seus filhos. O britânico começou a pensar como poderia contribuir. Criou, então uma pequena organização chamada "Comitê Britânico pelos Refugiados da Checoslováquia", cujo objetivo era salvar crianças perseguidas pelo nazismo. Sua mãe liderava uma equipe, formada por voluntários, no modesto escritório no centro de Londres. Muitas famílias começaram a procurá-los. O governo da Inglaterra aceitou abrigar as crianças sob a condição de Nicholas encontrar famílias dispostas a adotá-las. Ao mesmo tempo em que eram espalhados anúncios com fotos, Nicholas conseguia pais adotivos e os documentos de viagem exigidos - um punhado deles falsificados.
As primeiras 20 crianças beneficiadas pelo "comitê" saíram de Praga em 14 de março de 1939. No dia seguinte, as tropas de Hitler ocuparam a cidade - a perseguição aos judeus pelo Exército nazista se intensificava. Durante a primavera e o verão europeu daquele mesmo ano, sete trens com mais de 600 crianças partiram do Leste Europeu para o Reino Unido. Um comboio com outros 250 garotos partiria em 1º de setembro, data do início da Guerra. Já o oitavo trem nunca saiu: todos os pequenos passageiros desse último comboio morreram em campos de concentração. Após salvar centenas de crianças, Nicholas se voluntariou para a Cruz Vermelha e trabalhou como piloto não-treinado da Força Aérea Real (RAF). Casado e pai de dois filhos, teve uma vida comum por quase meio século.
Momento inesquecível
Em 1988, a emissora de TV britânica BBC convidou Nicholas para integrar a plateia do programa That's Life, que reconstituiria sua participação humanitária nos bastidores da Segunda Guerra Mundial. Cercado de pessoas com idade aparente acima dos 60 anos, ele ouviu a apresentadora Esther Rantzen perguntar: "Existe alguém nesta plateia que deve sua vida a Nicholas Winton? Se houver, poderia levantar-se, por favor?". Mais de 20 pessoas ficaram de pé. Contido, Nicholas enxugou uma lágrima por trás das hastes grossas de seus óculos. Pela primeira vez, reencontrava algumas crianças que havia salvado. "Foi o momento mais emocionante da minha vida", lembrou para a versão inglesa do programa 60 Minutos. A partir dali, descobriram quem as tinha protegido do extermínio em massa. Até aquele momento, não sabiam nem de que maneira haviam sido adotadas. Apenas lembravam-se, ainda emocionadas, da despedida de seus pais - muitos não tiveram coragem de dizer aos filhos que nunca mais os veriam, na certeza de que não sobreviveriam às atrocidades da guerra. Essas crianças cresceram, tiveram filhos, netos e bisnetos.
Por sua contribuição, Nicholas Winton recebeu muitas homenagens. Em 2003, a Rainha Elizabeth II o intitulou "Sir", mais alta honraria da família real inglesa. Organizador dos chamados "trens da vida", Nicky foi definido pelo presidente tcheco Milos Zeman como "exemplo de humanidade, altruísmo, coragem e modéstia", momento em que recebeu a Ordem do Leão Branco, em 2014. Apesar da idade avançada, Nicholas continua a proliferar bondade, seja ajudando pessoas, seja construindo casas para cuidar de idosos. Sua trajetória foi documentada no longa Nicky's Family (2011) e na biografia escrita por sua filha, If It's Not Impossible... The Life of Sir Nicholas Winton, lançada no ano passado. "Não me vejo como um herói. O que fiz foi algo que os outros achavam impossível, mas eu tinha de tentar. Acho que damos muita ênfase ao passado, estou mais interessado no presente e no futuro", declarou ao 60 Minutos.
(texto publicado na revista Contigo edição nº 2072 - 4 de junho de 2015)
Nicky's Familya official trailer
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