quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Uma alternativa às alternativas - Daniel Quandt


O que as pequenas irracionalidades do cotidiano dizem sobre a maneira como vemos o mundo?

Na pequena TV do metrô, o horóscopo diário divide espaço com as notícias da semana e os últimos resultados do futebol. Em farmácias de manipulação, é comum ver a homeopatia lado a lado com a medicina empírica. Ao conhecer novas pessoas na Universidade, seu signo é tão importante quanto seu nome, sua idade ou seu curso.

Quando me descrevo como cético, dificilmente recebo uma resposta positiva. De alguma maneira, a conotação da palavra se tornou suja, repleta de significados e suposições subjacentes que agridem a natureza nobre dessa disposição.

O cético costuma ser associado à mente fechada, incapaz de assimilar novas ideias, de percorrer novos caminhos. Apesar de sua estreita relação com a busca científica, o ceticismo recebeu um caráter de dogma quase que religioso. Caráter esse que, talvez, seja fruto da resistência daqueles cujas crenças e convicções não são exatamente receptivas ao escrutínio minucioso de um cético.

Sabemos que é prudente duvidar daquilo que nos é apresentado, filtrando novas informações por tudo que já conhecemos antes de aceitá-las como verdadeiras. Intuitivamente, reconhecemos a praticidade e o valor de nos comportarmos dessa maneira. Por que, então, falhamos em fazê-lo quando se trata de alguns assuntos?

Há três principais maneiras através das quais traímos o uso da razão fazendo o mau uso (ou desuso) do ceticismo, que muitas vezes acabam por se misturar. A primeira, que deu origem ao sentido negativo atribuído ao termo hoje, consiste em parar no primeiro passo do processo: a dúvida. Infelizmente, se a dúvida não é seguida de uma leitura honesta e receptiva dos fatos, ela serve apenas para manter a mente fechada e inflexível.

O erro de quem cai nessa armadilha está justamente em não se deixar convencer, não importando quanta evidência exista para isso. De fato, é provável que por trás desse comportamento exista, na verdade, uma vontade de se manter preso a ideias anteriores que dificilmente foram tão bravamente combatidas pelo sujeito em questão.

Na segunda, a dúvida inicial existe, assim como a disposição a ser convencido de uma nova maneira de encarar os fatos - porém, assim que surge uma versão diferente, ela se transforma em dogma, e como no primeiro caso, novas evidências são incapazes de mudá-la.

Comum entre aficionados por teorias de conspiração e explicação "alternativas", esse modo de pensar apela a algo bastante profundo dentro de nós: a vontade de ser uma voz correta em um ar de gente errada, e contestar a "versão oficial" na qual acreditam os crédulos que não sabem o que sabemos.

Quando essa vontade se sobrepõe à criteriosidade com que recebemos as evidências para sustentar a nova ideia, os resultados são variados: podemos acabar não acreditando que o homem foi à Lua, por exemplo, apesar da imensidão de provas de que pisamos por lá.

Por outro lado, o mesmo fenômeno é o que faz com que, cada vez mais pais e mães deixem de vacinar seus filhos, causando epidemias de doenças que já não se via há décadas. O motivo? Baseados em um único estudo (comprovadamente forjado) e indo contra décadas de pesquisas minuciosas, eles acreditam haver uma relação entre a vacinação e o autismo.

A terceira e mais comum forma de deixarmos de lado nosso ceticismo é também a mais compreensível. Trata-se, é claro, da nossa tendência de acreditar em algo não por termos bons motivos para tanto, mas porque gostaríamos, às vezes mais do que qualquer outra coisa, de que fosse verdade.

Pessoalmente, admito que a morte me assusta. A ideia de que, cedo ou tarde, serei obrigado a terminar minha estadia neste mundo me enche de ansiedade e incerteza. Acreditar na vida após a morte, portanto, seria, para mim, algo tranquilizador.

Infelizmente, querer que algo seja real não torna isso fato. E que fique claro, não estou afirmando a inexistência disso ou de qualquer outra coisa. Afinal, a ausência de evidência não é evidência de ausência.

Por mais que nossa razão tenha aberto portas que nos permitem entender o mundo melhor do que nossos antepassados, sempre haverá lacunas a serem preenchidas. O ser humano, como a natureza de Aristóteles, abomina o vácuo. É difícil aceitar "não sei" como resposta, ou reconhecer a desordem que nos cerca como algo natural com que devemos lidar.

Queremos acreditar que há um plano, um motivo pelo qual as coisas acontecem, um caminho traçado na areia por algo além da nossa capacidade de compreensão. Recorremos ao tarô, à astrologia, aos presságios de místicos - na esperança de que algo explique a inexplicabilidade de tudo que nos cerca. Chegamos até a aceitar respostas contraditórias, na esperança de que alguma delas seja a correta.

Da mesma maneira, quando temos de enfrentar situações assustadoras (como uma doença, por exemplo), recorrer a terapias alternativas que prometem soluções 'limpas' e indolores nos parece uma boa saída para evitar o processo árduo e incerto da medicina "tradicional", por mais que ela tenha melhorado desde sua concepção.

Tanto nas alternativas do campo do orientalismo - como a acupuntura e o reiki - quanto nas que adotam termos e processos que se aproximam da ciência, como a homeopatia, sem dúvida há praticantes que acreditam tanto quanto seus pacientes em sua eficácia.

Ao mesmo tempo, no entanto, há aqueles cuja perversão está em explorar pessoas em situações delicadas, oferecendo esperanças e aproveitando-se de sua vulnerabilidade para ganhar dinheiro em cima delas. De certa forma, é possível argumentar que nossa boa vontade em aceitar a versão bem intencionada de tais práticas abre portas para o charlatanismo.

Há benesses em nos entregarmos a pequenas irracionalidades, é claro. De outro modo, dificilmente elas fariam tanto sucesso. O sentimento de pertencer a um grupo, por exemplo, é um eterno motivador do ser humano, e é difícil aceitar o quão pouco conhecemos sobre a vida e o Universo. O método que encontramos de investigar os mistérios que nos cercam, a ciência,  às vezes parece impenetrável. Suas respostas são complexas, incompletas e nem sempre apontam um caminho claro a ser seguido.

Mesmo assim, por ter conclusões testáveis e reproduzíveis e permitir a correção de erros durante seu processo, o método científico continua proporcionando descobertas e resultados que mudam nossa maneira de ver o mundo. Nas palavras de Richard Dawkins: "Há poesia no mundo real. A ciência é a poesia da realidade".

A razão é o que diferencia o ser humano de todos os outros seres vivos. Somos sapiens, afinal. Abrir mão delas é, portanto, abrir mão do que nos torna únicos. Estamos dispostos a fazer isso? Na dúvida, repita o mantra: alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias.




(texto publicado no Jornal do Campus nº 444 - ano 33 - agosto de 2015)

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