Com bruscas mudanças climáticas e diversidade cultural gritante, as ruas de São Paulo restringem e ampliam o guarda-roupa de seus moradores
O céu amanhece nublado na cidade de São Paulo. Dentro de um ônibus lotado, agasalhados com casacos, jaquetas e moletons, homens e mulheres disputam espaço durante o trajeto até os compromissos do dia. Do lado de fora, sapatos confortáveis e calças jeans de diversas tonalidades tomam conta das calçadas e das faixas de pedestres. As horas avançam e o termômetro faz o mesmo. Por volta do meio dia, os agasalhos são postos de lado, para serem trazidos de volta somente no fim da tarde.
As mudanças bruscas no clima, bem como a irregularidade das calçadas e a pressa típica da multidão que ocupa as ruas são apenas alguns dos fatores que interferem na maneira como as pessoas se vestem diariamente em São Paulo. "Na cidade, a relação entre o espaço e as pessoas estabelece um diálogo com o urbano, o concreto, o asfalto, a violência, a sujeira e a multidão", avalia Astrid Façanha, mestre em ciência da comunicação e especialista em composição e imagem de moda.
O guarda-roupa dos paulistanos tende a ser prático, confortável e versátil, preparado para qualquer ocasião. De um lado, as ruas são responsáveis por limitar as escolhas de vestuário de cada um, do outro, elas dão a oportunidade para quem quer se expressar a sua maneira numa grande cidade.
A roupa de cada dia
São Paulo é sede de 38% das 100 maiores empresas privadas de capital nacional e um dos principais centros empresariais da América Latina, o que explica a grande quantidade de engravatados que passam diariamente pelas principais avenidas da cidade. O gerente de marketing do escritório de advocacia AIDARsbz, Eduardo Ferreira, de 33 anos, é um deles. Ele começou a usar terno aos 23 anos e se habituou ao traje formal com o passar do tempo. Hoje, chega até a "dormir no sofá" usando gravata sem se incomodar. Não tenho problema com a roupa do trabalho, na verdade, só troco quando quando vou à academia", conta.
A vida profissional tornou-se um fator determinante na maneira como as pessoas se vestem. "Inevitavelmente, você vai ter que se adequar ao meio", pondera a especialista Astrid Façanha. No entanto, o código de etiqueta no vestuário do paulistano não se restringe ao ambiente de trabalho. Os moradores da cidade mostram no dia-a-dia uma preocupação com o estilo e, ao mesmo tempo, o conforto, no intuito de aguentar a agitada rotina paulistana.
Tal agitação fica ainda mais clara para os que se mudam de outras cidades para São Paulo. É o caso de Dalva Falcão, enfermeira que trocou o sol carioca pela garoa paulistana. "O carioca é mais despojado; em São Paulo, as pessoas são mais contidas", afirma.
A temperatura foi um fator decisivo nas adaptações de visual da enfermeira: ela teve que aposentar várias peças que costumava usar no Rio de Janeiro depois da mudança. "No Rio, as mulheres em geral usam muitas peças decotadas e sensuais. Aqui em São Paulo, ando mais coberta", explica Dalva. De acordo com Astrid Façanha, "enquanto o carioca deseja ser sensual, o paulistano prefere mostrar que é informado. A configuração urbanística de São Paulo contribui para moldar esse estilo. A roupa urbana acaba se tornando mais acolchoada, com cores mais escuras e vai, aos poucos, se transformando numa roupa de proteção".
Dalva também percebeu essa mudança automática na cartela de cores de seus trajes: "As roupas que uso agora são mais escuras. Sempre optei por cores mais básicas, como bege e marrom, mas notei que em São Paulo se usa muito preto. Logo, também passei a usar - o que não fazia no Rio, até pelo calor".
Liberdade urbana
A convivência e a coexistência de pessoas com diferentes tradições e origens, bem como o aspecto urbano das ruas paulistanas, permitem que os cidadãos sintam-se a vontade para expressarem suas personalidades plurais. Para Alberto Hiar, diretor criativo da Cavalera, marca brasileira especializada em moda urbana, "as personagens das ruas mostram que o paulistano gosta de se vestir bem e com estilo. Como São Paulo é um local que recebe gente do mundo todo, os estilos se misturam e se complementam, criando algo único".
A hostess da casa noturna Club Yacht, Melissa Depeyre, de 34 anos, concorda: "Muitas pessoas migram para São Paulo de outras cidades, estados e países. Elas trazem consigo influências do seu lugar de origem e, quando chegam aqui, vão em busca do seu próprio estilo".
O jovem Luís Felipe Giuberti sentiu essa experiência na pele quando, há 5 anos, se mudou de Franca, no interior de São Paulo, para a capital. "No interior era difícil eu me encontrar, pois o padrão é limitado. Eu via peças diferentes, mas não tinha coragem de comprar porque faltavam ambientes para usá-las." Astrid explica esse processo que ocorre nas pequenas cidades: "A vantagem do grande centro urbano em relação às cidades menores é que não existe a pressão social que te obriga a se vestir de uma determinada maneira para compactuar com algumas normais sociais".
A mudança para São Paulo possibilitou que Luís desenvolvesse seu senso de estilo - e que ficasse mais confortável colocando-o em prática. "Em termos de liberdade na escolha da vestimenta e de julgamento alheio, a cidade é bem mais liberal. Eu nunca me senti julgado por algo que usei. Talvez alguém tenha olhado estranho, mas, no interior, eu seria expulso", conta.
Elegância prática
Melissa, que estudou arquitetura e já trabalhou como assistente de Glória Coelho, renomada estilista brasileira, acredita que o que pode ser generalizado em relação ao estilo presente nas ruas paulistanas durante o dia é a busca pelo conforto e pela praticidade. "As pessoas em São Paulo são muito ativas, estão se movimentando o tempo inteiro, andam de cima para baixo e por isso querem algo prático."
Junto a essa característica, vem o anseio pela elegância, que é visto no guarda-roupa da própria Melissa. Nele podem ser encontradas peças de estilistas como Alexandre Herchcovitch e botas de criação própria (mantidas guardadas, justamente por não serem práticas). Astrid Façanha descreve os paulistanos como pessoas que "almejam a elegância, o estar na moda, para serem descolados e chiques".
Esse contraste entre a praticidade e a elegância que ocorre em São Paulo se deve ao fluxo de informação e noção de estilo nas ruas e em toda a cidade. "Além de ter o próprio ambiente urbano como influência, a grande circulação de informação também contribui para a composição do estilo paulistano. Temos esse contraste: de um lado, o vestir urbano, e de outro, a informação de moda que vai se democratizando, dando uma quebrada na roupa de circulação, de proteção", explica Astrid.
Tal oposição pode ser melhor observada na transição do dia para a noite nas ruas de São Paulo. "Existe um movimento contrário de romper com a lógica cinzenta do espaço: uma intenção velada de desafiá-la", conta o especialista. As cores tão sóbrias e sólidas que, durante o dia, quase se misturam ao concreto dos edifícios, se intensificam à luz da lua. Alberto Hiar, da Cavalera, acredita que "São Paulo é mais que preto e cinza". Para ele, as cores da cidade surgem não só na agitação da noite, mas "a partir da arte de rua, da música, do rock ao hip hop e do grafite nos muros".
(texto publicado na revista Esquinas nº 54 - 2º semestre de 2013)
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