sábado, 24 de setembro de 2016

A avenida dos camelôs - Mariana Oliveira


Lei municipal que libera a venda de artesanato na rua leva a uma proliferação de comerciantes informais na Paulista

Aberta no fim do século XIX para abrigar casarões clássicos, a Avenida Paulista começou a priorizar a circulação dos pedestres nos anos 70, quando uma grande reforma criou algumas das calçadas mais largas e confortáveis da capital. Ao longo das últimas décadas, no entanto, esse amplo espaço passou a ser dividido com mobiliários urbanos diversos, de pontos de ônibus a entradas de estações de metrô. Atraídos pela multidão (calcula-se que circule por ali mais de 1 milhão de pessoas por dia), os camelôs também passaram a ocupar o pedaço. A concentração desses ambulantes nessa área sempre variou de acordo com o rigor da fiscalização. Há três anos, uma lei municipal, na prática, abriu o sinal verde para a turma. O resultado disso é que as barraquinhas de comerciantes informais se multiplicaram pelos quase 3 quilômetros da via. Em dias de maior movimento, como sexta-feira, a quantidade de camelôs na Paulista ultrapassa os 120, segundo contabilizou VEJA SÃO PAULO no último dia 8.

Assinada por Fernando Haddad em 2013, a norma municipal libera apresentações de artistas de rua - e o ganho financeiro espontâneo proveniente do espetáculo - sejam de música, teatro, dança, literatura ou circo. A regra inclui também as artes plásticas entre as atividades permitidas. Esse detalhe cria a brecha para que artesãos exponham, e vendam, seus trabalhos manuais nas calçadas de toda a cidade. A Paulista acabou virando o "shopping" a céu aberto desse comércio informal. Teoricamente, produtos industrializados são proibidos, mas não é difícil encontrar nas barraquinhas e esteiras no chão carregadores de celular ou discos de vinil.

Para organizar a situação por ali, a Subprefeitura da Sé, responsável pela região, criou uma portaria no começo do ano passado e limitou o número de pontos na via a cinquenta, distribuídos em locais fixos. Os espaços não têm dono: quem chegar primeiro fica. Se o quarteirão já estiver com a capacidade esgotada, é preciso desmontar a banquinha e ir para outro canto. A realidade, no entanto, é bem diferente. De acordo com o que constatou a reportagem da revista, atua por lá mais que o dobro do número de "artistas" permitido. A esquina com a Rua Augusta é o lugar de maior aglomeração. Ali poderiam atuar no máximo dois comerciantes, mas chegam a se acumular nove deles. No Parque Trianon, a história se repete. O lado da Rua Peixoto Gomide é ocupado por nove barraquinhas, quando deveria ter até duas.

A única exigência para alguém se instalar na rua é portar a carteira da Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco), vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico. A retirada do documento é realizada após um teste, no qual o interessado produz algum artigo com as próprias mãos, diante de um corpo técnico do órgão. A atual crise econômica aumentou a procura pela inscrição em cerca de 20% em 2015. "Hoje há 19 113 pessoas cadastradas. Têm ocorrido muitas demissões no mercado, e o artesanato tornou-se uma fonte de renda viável", explica a superintendente Elisabete Bacellar do Carmo. No entanto, encontrar alguém na via que apresente o tal documento oficial é tão difícil quanto achar uma pessoa pedalando em algumas das ciclovias de Haddad. "Meu exame está marcado para fevereiro", esquiva-se Mário Macedo, que vende objetos de decoração feitos de madeira próximo à esquina com a Rua Pamplona.

Apesar do óbvio problema de falta de controle, a administração municipal jura que a fiscalização na Avenida Paulista é realizada até três vezes por semana por seis funcionários da Subprefeitura da Sé, acompanhados por agentes da Polícia Militar ou da Guarda Civil Metropolitana. Entre as ações do grupo está a apreensão da mercadoria dos comerciantes que se encontrem fora do ponto ou não possuam a carteira de identificação. No entanto, frequentadores assíduos do local dizem que essas checagens não são comuns. "Sempre vejo policiais por perto, mas eles nunca fazem nada contra os camelôs", conta o economista José Rubens Ferreira, funcionário do Banco Safra, quase na esquina com a Rua Augusta. As autoridades agora prometem aumentar o número de rondas. "A Paulista não pode se tornar uma terra de ninguém", afirma o subprefeito da região, Alcides Amazonas, responsável pela confusão atual.

Os maiores críticos são os que acusam os informais de concorrência desleal. "A avenida está um lixo, só tem barraqueiros e não há como competir com quem não paga aluguel ou impostos", reclama o empresário Francisco Rodrigues, dono da Look Lanches, localizada próximo à Estação Consolação. Em outros pontos, porém, existem até casos de parcerias entre os empresários fixos e os ambulantes. "Às vezes eu empresto a máquina de cartão de crédito ao pessoal aqui do entorno", conta o vendedor Rui Nunes, que trabalha em uma banca de jornal vizinha ao Masp.

São os hippies que marcam mais presença nos 2,8 quilômetros na via. A mineira Vitória Moreira é uma das pessoas que não têm casa definitiva e vivem viajando pelo país. Dormindo em um hotel na Rua Aurora, ela precisa reunir pelo menos 60 reais por dia com a venda de suas pulseiras de couro para conseguir bancar a hospedagem. "Venho a São Paulo para comprar matéria-prima e passo uns dias aqui na Avenida Paulista porque na República há muitos ladrões", explica. Para alguns moradores dos bairros vizinhos, a sensação de insegurança é o principal problema provocado pela disseminação da informalidade. Tendo já reclamado diversas vezes na prefeitura, a aposentada Vania Filomena Farina, que vive há mais de trinta anos na Rua São Carlos Pinhal, teme que sua região se transforme. "Do jeito que está, isso aqui pode virar um novo centro, velho e decadente", lamenta.




(texto publicado na revista Veja São Paulo de 20 de janeiro de 2016)

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