Depois de fazer dos quatro anos à frente do Consulado da França em São Paulo uma festa e uma oportunidade para o debate da igualdade rcial, Damien e Alexandra Loras decidem ficar no Brasil
Na noite de terça-feira (30), Damien Loras, 46, começou a se despedir da residência consular da França em São Paulo com um brinde à babá Eliana Barbosa, 37. Ofereceu um champanhe rosé da Provença para a profissional que cuida do seu filho Raphäel, 4, que se preparava para dormir. "O cônsul me agradeceu pela dedicação e pelo carinho", conta a babá. No dia seguinte, o diplomata e a mulher, Alexandra, 39, despediram-se oficialmente com o mesmo ritual dos outros sete empregados da residência que ocuparam nos últimos quatro anos e transformaram em espaço festivo. Era o endereço de uma consulesa que virou referência no debate da igualdade racial e do empoderamento da mulher negra. A despedida do posto é uma interrupção na carreira diplomática, já que o agora ex-cônsul se licenciou, ao decidir ficar em São Paulo. "Uma parte importante da história do mundo vai ser escrita no Brasil. Fazer parte disso, com Alexandra e nosso filho, é muito entusiasmante", afirma.
O diplomata se diz surpreso com a falta de confiança do povo brasileiro no potencial do país. Ele e Alexandra viraram sócios da Loras D&A Consultoria. O nome reúne as iniciais de ambos, que ligadas pelo "E" comercial ganham a sonoridade em inglês de DNA, a molécula a vida. No caso, uma vida nova nos trópicos e na iniciativa privada. Enquanto ele passa a atuar como consultor de empresas que desejam investir no Brasil, ela vai dar sequência à bem sucedida carreira de palestrante e deslanchar projetos, como um programa de TV.
Ela proferiu mais de 150 palestras, a maioria gratuitamente, mas passou a ser convidada por bancos e multinacionais dispostos a pagar até R$ 15 mil para ouvi-la contar como se "tornou uma melhor versão de si mesma" e fugiu do papel decorativo de consulesa.
"Alexandra ganhou protagonismo na luta contra a discriminação racial no Brasil, além de se expressar de uma forma que as pessoas querem ouvir", diz a juíza Mylene Ramos, única magistrada negra do Fórum Trabalhista da Zona Sul de SP.
As duas são parceiras em nova empreitada: um curso de pós-graduação em relações étnico-raciais da faculdade Campos Salles.
Filha de mãe francesa e pai africano, a ex-consulesa usa a trajetória de sucesso para aumentar a autoestima entre os afrodescendentes. Vai lançar um livro sobre grandes inventores negros da humanidade.
"Com opinião que se soma à própria história e ao seu carisma. Alexandra é uma espécie de terrorista do bem", define Mariana Barros, que a convidou para ser voluntária no projeto "Treinamento Intercultural para Imigrantes e Refugiados.
Uma vez por mês, Alexandra dá cursos para haitianos e africanos que buscam vida nova no Brasil. O ativismo também foi transformador para a francesa mestiça, que passou a valorizar seus fios crespos. "Durante 30 anos alisei meu cabelo até ter coragem de assumir minha beleza natural", diz. Mas precisa vencer a resistência do marido. "Damien não gosta do meu cabelo natural, quer que eu alise." Ao ouvir a conversa, ele brinca: "Quero que ela fique loura".
Não é verdade. "Ter uma família misturada é um 'assef' [um ativo]", afirma ele. "É uma riqueza enorme ter uma esposa negra, eu ser branco e termos um filho quase norueguês. O movimento da história é esse. Daqui a alguns anos não existirá um branco 100%. Seremos todos pardos, misturados. É matemático."
Ele faz graça com ofato de o herdeiro ser louríssimo. "Eu sempre falo: não sei se sou o pai, mas com certeza ela não é a mãe."
A piada é boa, mas o papo é sério. "Eu tenho uma origem social tradicional. Alexandra vem de uma família um pouco bagunçada. Traz esse olhar transgressivo, alargando meus horizontes. A vida é maior ao lado dela."
O bisneto de um aristocrata decapitado na Revolução Francesa encantou-se pela apresentadora que conheceu em um jantar na casa de um amigo em Paris, há oito anos. "Quando nos vimos, caiu um raio", conta ela, que seis meses depois seria pedida em casamento na Provença.
Alexandra desembarcou em São Paulo com um bebê de quatro meses no colo e tendo abdicado da carreira para seguir o marido. O jovem casal impôs seu estilo, abrindo as portas do consulado para diferentes tribos. Para quebrar barreiras, o cônsul comprou a ideia e articulou patrocínio para levar ao sambódromo o enredo "Je Suis Vai-Vai: Bem-vindos à França", um parceria com a escola de samba do Bexiga neste ano. Alexandra foi destaque no carro abre-alas e confirmou presença na passarela em 2017, embora admita que não tem samba no pé.
A veia festeira do casal se mostrou logo de cara, quando colocaram no calendário paulistano o Bailinho da Bastilha, em comemoração à data nacional da França, o 14 de julho, reunindo 11 mil pessoas em quatro edições.
Eles tinham a opção de ir para um novo posto diplomático na ONU, em Nova York, ou no Canadá, mas escolheram convictos a qualidade de vida paulistana. "São Paulo não é uma cidade que você ama à primeira vista. O primeiro encontro com esse monstro urbano pode ser bastante violento. Mas quanto mais você mora, mais entende a riqueza de viver aqui. Poucas cidades no mundo têm essa energia", elogia Damien.
O casal francês elegeu alguns programas prediletos na Pauliceia, entre eles ver os grafites do Beco do Batman, na Vila Madalena, e o skyline do topo do hotel Unique. Escapam sempre que podem para Picinguaba ou Barra do Una, no litoral norte. Outra opção é a fazenda dos amigos Juliana e Marcelo Sabó, em Campinas.
A designer de joias é uma das amigas mais próximas de Alexandra, companheira do Clube Pinheiros, onde a consulesa já foi confundida com a babá. "Alexandra veio fazer diferença na nossa sociedade. Difícil alguém do nosso status e do nosso meio ter uma cabeça tão aberta", diz Juliana, que não tem outras amigas afrodescendentes. "Infelizmente, temos ainda poucos negros com maior poder aquisitivo no Brasil."
Para chamar a atenção para o fato, Alexandra convidou outra amiga, Paola de Orleans e Bragança, descendente da família real brasileira, para vestir um avental em um ensaio fotográfico da "Vogue", no qual a consulesa posa de aristocrata.
Alexandra, no entanto, não quis posar para a "Playboy" brasileira, recusando o convite para um ensaio sensual na publicação. Mas ousou ao participar de um ritual do Santo Daime, em Alto Paraíso (GO). Foi conhecer a manifestação religiosa que usa a erva ayahuasca como bebida sacramental na intenção de fazer um documentário para a TV francesa sobre o tema. "Tinha medo dessa planta sagrada, mas foi a melhor experiência da minha vida."
Esse olhar curioso é um dos trunfos de um reality show que ela pretende protagonizar e que está negociando com o canal pago E! Entertainment. Até lá, esperam desfazer as inúmeras caixas, livrar poltronas e objetos do plástico bolha e dispensar os operários que finalizam a reforma no imóvel de cinco quartos a 50 metros da antiga residência no Jardim Paulistano.
(texto publicado na revista da Folha sãopaulo - 4 a 10 de setembro de 2016)
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