Pelo menos dezesseis cães e gatos são resgatados por dia das ruas da capital, grande parte abandonada por pessoas que haviam se comprometido a cuidar deles
Não se pode chegar perto dos oitos filhotinhos da cadela Clara, nascidos há cerca de três semanas. Como boa mãe, ela não quer ninguém mexendo com sua prole. A família ficou balançada por perder o lar de uma hora para a outra. No último dia 19, a cadela e seus bebês foram largados na frente da ONG Cão sem Dono, em Itapecerica da Serra, dentro de uma gaveta, com um punhado de ração. O canil da instituição, com capacidade para 210 bichos, está superlotado, com mais de 370 cães. "Mesmo sem condições, não tivemos outra opção a não ser acolher esses novos pets", afirma o diretor Vicente Defini. Não é a primeira vez que uma cena dessas ocorre por lá. Essa é uma realidade comum no dia a dia das entidades do tipo e na cidade como um todo. Os descartes acontecem também em parques, praças, estradas e portas do pet shops. Nem os hospitais veterinários públicos escapam. Há quem interne o bichinho doente e não volte nunca mais.
De acordo com um levantamento realizado por VEJA SÃO PAULO em dez das principais instituições atuantes nessa causa na capital, pelo menos 500 pets são resgatados das ruas por mês, uma média de dezesseis por dia, ou cerca de 6 000 por ano. Grande parte deles já teve uma casa e foi abandonada pelo dono, segundo os profissionais dessas ONGs. Trata-se apenas de uma amostragem. O problema, de acordo com os especialistas, certamente é muito maior. Não existem estatísticas oficiais a respeito do assunto, pois contabilizar a população de animais desamparados configura tarefa bastante difícil. "Eles costumam se concentrar em áreas de limpeza escassa e com abrigo, como terrenos baldios e construções", afirma Ricardo Augusto Dias, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo. Além disso, alguns têm endereço fixo, mas contam com acesso à rua, outros estão perdidos e há os chamados "cães comunitários", cuidados por diversas pessoas.
Os casos de pets que já tiveram dono, mas viraram "órfãos", são de cortar o coração. Mesmo com a difusão da ideia de considerar os bichos como integrantes da família, algumas pessoas ainda seguem a direção de percebê-los como mercadorias, que, consequentemente, podem ser descartadas. "Já ouvi os motivos mais absurdos de tutores para desistir das mascotes, do naipe de 'fiquei grávida' ou 'comecei a namorar e minha parceira tem medo'", diz a ativista Luisa Mell, cujo instituto recebe cerca de 500 pedidos de resgate diariamente. Os períodos de férias e festas de fim de ano acumulam recordes, pois os proprietários vão viajar, não têm com quem deixar os amigos de quatro patas (ou não querem gastar com os hotelzinhos) e optam pela medida extrema do descarte. "Nunca me esqueci de quando fui procurada por uma mulher que ia se mudar de casa e queria deixar comigo seu cachorro de 10 anos. Como pode jogar fora um companheiro de uma década?", espanta-se Luisa.
No fim do ano passado, sua equipe encontrou, no bairro da Penha, uma casa com quarenta cães sem supervisão. A mulher do antigo morador havia morrido e o rapaz resolveu trancar o espaço e dar no pé. Vizinhos alimentaram o grupo até a ação de salvamento da entidade. uma das fêmeas resgatadas, batizada de Lobinha, acabou adotada pela fotógrafa Bárbara Valente e seu marido, Rodrigo. "No começo, ela tinha muito medo, mas evoluiu bastante", alegra-se a mulher.
Não é raro flagrar uma ação irresponsável de descarte na capital. Em agosto, a produtora de moda Juliana Rebecchi visitava seus pais, no Imirim, quando suspeitou de um carro que se movia lentamente pela rua. Demorou pouco tempo para o motorista jogar pela janela do veículo uma cadela de cerca de 1 ano. "Não acreditei no que estava vendo", conta Juliana. Quando percebeu o sumiço definitivo do condutor, a moça apanhou a vira-lata e a levou à pet shop. Descobriu que Lara, como foi batizada, estava prenhe. Hoje ,Juliana vive com o filhote Shoyu e sua mãe, além de dois gatos. "Ela ficou triste durante muito tempo, chorava e procurava pelo antigo dono", lembra.
Nem só as mascotes sem raça definida acabam rejeitadas. "Às vezes, as pessoas compram os pets com pedigree por impulso ou para estar na moda", acredita Vanice Orlandi, presidente da União Internacional Protetora dos Animais. "Aí, por causa de algum desvio de comportamento, gestação, doença ou idade avançada, elas os deixam de lado". Entre os 900 moradores do abrigo no Canindé, aparece um pastor alemão bravo chamado Déjà Vu. O nome surgiu pelo fato de ele ter sido adotado e devolvido duas vezes. O agressivo american staffordshire terrier Thor, encontrado amarrado em uma árvore, também amarga o isolamento. "Dá para entender que se trata de um momento de desespero dos donos, mas nada justifica largar os bichos por aí", diz Vanice.
O abrigo do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), da prefeitura, em Santana, não recebe qualquer animal, apenas aqueles sem dono que representam grande risco à sociedade ou se encontram em estado terminal. Ou seja, caso alguém não queira mais cuidar de sua mascote, depende de alguém topar adotá-la ou da disposição das ONGs, sempre superlotadas, para recebê-la. A dificuldade acaba incentivando o crescimento da população de rua. "O tema é mais complexo do que se pode imaginar e envolve a sensibilidade das pessoas", entende Rita de Cássia Maria Garcia, pesquisadora do assunto e veterinária docente da Universidade Federal do Paraná. "Os animais abandonados fazem parte, de alguma maneira, da parcela excluída da sociedade. Em um universo que se acostumou com a presença de crianças nas ruas, como avançar na questão dos bichos?"
O abandono cria um problemão de saúde pública para a capital. Os cães e gatos podem transmitir doenças, como raiva e leishmaniose, e causar acidentes. Um dos modos mais utilizados para tentar conter esse grupo é a castração, a fim de evitar a reprodução descontrolada. Protetores independentes, ONGs e o CCZ costumam promover mutirões. O órgão municipal, no entanto, só realiza as cirurgias em indivíduos com um responsável definido - no ano passado, ocorreram 805 procedimentos em cães e 1 730 em felinos. O ativista Eduardo Pedroso atua independentemente com esterilizações em um cemitério na Zona Leste, ponto comum de descarte. "Não há vigilância alguma", explica ele. Durante os dois anos e meio de seu trabalho voluntário, aproximadamente 200 bichanos foram beneficiados. Em uma conta básica, um casal de felinos pode gerar mais de 300 descendentes em três anos. Na terra indígena instalada próximo ao Pico do Jaraguá, a população também sofre com a questão. Cerca de 400 cães e gatos perambulam por ali. Principalmente à noite, carros passam pelas vias ao redor para desová-los. O hábito piorou ainda mais o quadro de uma área extremamente pobre. Há ações veterinárias periódicas no local, mas insuficientes para sanar o problema.
Além da castração, a educação sobre posse responsável aparece como aspecto fundamental para atenuar a situação. Pouco adiantam os mutirões se os donos continuam largando os pets indiscriminadamente. Ao adotar, deve-se saber que os animais têm necessidades, provocam gastos, trazem comportamento imprevisível e vivem por muitos anos. "Promovemos campanhas focadas na conscientização com o objetivo de tentar mudar essa realidade", afirma a secretária estadual do Meio Ambiente, Patricia Iglesias. No frim de 2015, por exemplo, sua pasta promoveu no Parque Villa-Lobos, em Pinheiros, um evento em que os tutores podiam tirar dúvidas sobre os cuidados com os pets.
O abandono de gatos na área da Fundação Parque Zoológico, na Água Funda, ocasionou uma crise na instituição. Há alguns anos, o espaço virou ponto de descarte de felinos. "As pessoas os deixam aqui, achando que o zoo é o paraíso das espécies, que todas serão cuidadas por nós", conta a bióloga Kátia Rancura. "Mas não temos estrutura, e isso causa um desequilíbrio ambiental". Os bichanos caçam e são caçados pelos animais mantidos em cativeiro. Predam principalmente aves (acabaram com os marrecos), mas também répteis e anfíbios. Além disso, transmitem doenças por contato, através das fezes - como a toxoplasmose, que já matou um primata - ou mesmo da saliva, quando abocanham a comida dos recintos. Chegaram a arranhar frequentadores. Mas também caem nas garras de tipos como o lobo-guará e a harpia, uma espécie de gavião. Já houve casos de gatos que foram atacadas na frente dos visitantes, causando certo choque aos frequentadores de passagem por lá. Em 2011, a administração do lugar começou um projeto de esterilização, vacinação e microchipagem, que contemplou 200 indivíduos. Alguns deles acabaram adotados por funcionários, mas outros se mostravam selvagens demais e retornaram à mata. "Ainda neste ano, voltaremos com a ação, agora em parceria com ONGs, para ajudar a conseguir um lar para eles, e investindo na conscientização da população", afirma Cauê Monticelli, outro biólogo da equipe do local.
Em São Paulo, o ato de abandono pode se enquadrar em uma lei estadual que estipula multa de 3 000 reais. Uma sentença mais severa, no entanto, depende de um juiz que, no âmbito federal, enquadre o caso como crime ambiental, por maus-tratos ou abuso dos bichos. Se condenado, o infrator pode pegar de três meses a um ano de cadeia. "Nunca vi alguém ir para a prisão por causa disso", afirma Vania Maria Tuglio, promotora do Gecap, departamento do Ministério Público que investiga denúncias ligadas ao meio ambiente. "A lei muito branda incentiva essa atitude contra os bichos."
(texto publicado na revista Veja São Paulo de 4 de maio de 2016)
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