sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O cão da Sra. Donovan - James Herriot

A Sra. Donovan era uma mulher que realmente gostava de circular. Não importava o que estivesse acontecendo na nossa cidadezinha do Vale de Yorkshire, no norte da Inglaterra (casamentos, enterros, liquidações), lá estava aquela velha viúva baixinha observando tudo com seus olhos pretos e buliçosos - ao lado, inevitavelmente como sempre, permanecia seu cãozinho terrier.

Eu disse "velha", mas ela podia ter qualquer idade entre 55 e 75 anos. Sua vitalidade era a de uma jovem, porque ela caminhava por toda a região, a fim de não perder nada do que se estivesse passando. Muitas pessoas viam isso com maus olhos, mas o fato é que sua insaciável curiosidade lhe permitiu participar de quase todas as atividades da cidade, inclusive a prática de veterinária, pois a Sra. Donovan, entre seus inúmeros hobbies, tinha também o de veterinária.

Na verdade, esta faceta de sua vida transcendia todas as outras. A senhora podia discorrer durante horas sobre as indisposições que atacavam os animais e tinha á sua disposição um verdadeiro estoque de remédios - suas duas especialidades eram um pozinho mágico que fazia maravilhas e um xampu miraculoso para fazer crescer o pelo dos cachorros. Tinha uma incrível capacidade para descobrir animais doentes e não era incomum que eu fosse atender a um chamado e a encontrasse administrando um de seus remédios caseiros num dos animais que eu pensava ser meu paciente.

"O Senhor Herriot entende muito de gado e coisas assim", dizia ela a meus clientes, "mas não sabe nada de cães ou gatos".

Naturalmente, eles acreditavam nela, pois tinha o apelo místico do amador e, para completar esse fascínio, nunca cobrava por seus serviços. Eu a encontrava frequentemente e ela me dizia sorrindo que havia passado a noite toda com o cãozinho da Sra. Fulana, exatamente aquele que eu estava tratando - e tinha certeza de que o poria de pé outra vez.

Apesar disso, não havia nenhum sorriso no seu rosto no dia em que entrou correndo na minha clínica e gritou: "Senhor Herriot! Venha depressa! Meu cãozinho foi atropelado. A roda passou encima dele."

Três minutos depois eu estava a observá-lo, mas nada podia fazer. A Sra. Donovan caiu de joelhos. Durante alguns momentos, alisou o pelo grosso da cabeça e do peito do animal. "Está morto, não está ?", sussurrou finalmente.

"Temo que sim".

Mais tarde, tentou sorrir. "Pobre Rex. Não sei o que farei sem ele. Viajamos juntos uns bons quilômetros, sabe ?"

"Sim, sei. Ele levou uma vida maravilhosa, Senhora Donovan e deixe-me dar um conselho, arranje outro cão. A senhora se sentiria perdida sem um."

Ela balançou a cabeça. "Não, aquele cãozinho significava muito para mim. Não poderia deixar que outro tomasse o lugar dele. Rex foi o último cão em minha vida."

Deve ter sido um mês depois que o Inspetor Halliday, da Sociedade Protetora dos Animais, me telefonou.

"Senhor Harriot, pode vir aqui para tratar de um animal ? Um caso de crueldade", disse. Deu-me o nome de uma rua de cabanas na margem do rio e disse que me esperaria lá.

Assim que cheguei à viela, encontrei Halliday com ar profissional em seu uniforme escuro. Alguns curiosos espreitavam ali por perto e, com uma sensação de desalento, reconheci um rosto na multidão. Claro que a Sra. Donovan não podia faltar, pensei.

Halliday e eu entramos num casebre em ruínas, sem janelas. Calmamente sentado num canto, havia um cão enorme, acorrentado a uma argola na parede. Eu tinha visto cães magros, mas os osso daquele cachorro epetavam sua pele com impressionante nitidez. Seus quartos traseiros estavam cobertos de feridas já gangrenadas. Restos de carne podre pendiam delas e havia feridas semelhantes em todo o esterno e costelas. O pelo, de cor amarelada, estava coberto de lama e sujeira.

"Não deve ter mais do que um ano", disse o inspetor. "Acho que nunca saiu daqui desde pequeno. Se alguém não o tivesse ouvido ganir, jamais o teríamos encontrado."

"O dono dele não é muito bom da cabeça", continuou Halliday. "Vive com a mãe, que também é melhor. Parece que, de vez em quando, ele jogava um pouco de comida ao animal, mais nada."

Abaixei-me e passei a mão em sua cabeça e ele imediatamente reagiu descansando uma pata no meu pulso. Havia uma espécie de patética dignidade na maneira como ele se mantinha, observando-me com seus olhos tranquilos, sem medo.

"Naturalmente, o senhor vai acabar com o sofrimento deste pobrezinho, não vai ?", perguntou Halliday.

Continuei a afagá-lo enquanto pensava. "Sim, acho que vou. É o mais sensato a fazer. Por favor, abra bem a porta para que eu possa dar uma olhada nele."

Quando o aposento ficou mais claro, vi que ele tinha dentes perfeitos e membros bem proporcionados. Pus meu estetoscópio em seu peito e, enquanto eu ouvia suas pulsações fortes e regulares, o cão pousou novamente a pata em meu pulso.

"Sabe, inspetor, dentro deste saco de ossos há um coração de ouro. Gostaria que houvesse alguma forma de tirá-lo daqui." Enquanto falava, notei um par de olhinhos pretos espiando atentamente o cão, por detrás do inspetor. A curiosidade da Sra. Donovan fora demais para ela. Continuei a falar como se não tivesse dado por sua presença ali.

"Sabe, o que este cachorro precisa inicialmente é de um bom xampu e depois um longo tratamento que inclua algum pozinho mágico, para fazê-lo se recuperar."

O inspetor parecia espantado.

"Mas onde vou encontrar isso ?", indaguei eu. Suspirei e disse, ao me por de pé: "Infelizmente, acho que não há mais nada a fazer. O melhor é botar o bichinho para dormir. Vou pegar minhas coisas no carro."

Quando voltei ao barraco, a Sra. Donovan já estava examinando o cachorro, apesar dos protestos do inspetor.

"Olhe!", disse ela excitada, apontando para um nome gravado na coleira. "Ele se chama Roy. Parece com Rex, não é ?" Ficou em silêncio por um momento, como se tivesse sentido uma profunda emoção. "Posso ficar com ele ? Eu consigo dar um jeito no bichinho, tenho certeza. Por favor, deixe-me ficar com ele!"

"Depende do inspetor", respondi.

Halliday olhou-a indeciso e me chamou para um canto. "Senhor Herriot, não sei o que irá acontecer, mas este cão já passou por um maus pedaços e esta mulher não me parece que seja pessoa de muita confiança."

"Pode me acreditar, inspetor, se há alguém nesta cidade capaz de dar uma nova vida ao cão, é ela."

Halliday ainda não parecia muito convencido. "Não entendo nada. Que história é essa de xampu e pozinho mágico ?"

"Deixe pra lá. O que o cão precisa é de muita comida e afeto e é isso que ele vai ter. Dou-lhe a minha palavra."

"Está bem", concordou Halliday. "O senhor parece muito confiante."

Até então, nunca havia procurado a Sra. Donovan deliberadamente, mas agora eu a buscava dia após dia pelas ruas. Não gostei nada quando soube que Gobber Newhouse se embebedou e se jogou de propósito com a bicicleta num buraco de três metros e que a Sra. Donovan nem sequer foi lá para observar as pessoas tentando retirá-lo e quando ela não foi ver o incêndio do armazém fiquei seriamente preocupado.

Talvez eu devesse ter ido lá para saber como ela ia indo com o cão. Eu havia medicado as feridas antes que ela o levasse, mas é possível que isso não tivesse sido suficiente. No entanto, eu confiava na Sra. Donovan - muito mais do que ela em mim.

Três semanas depois, eu estava disposto a ir à casa dela. Então, vi-a passeando pelo mercado e examinando tudo em redor, exatamente como antes - com a diferença de que, desta vez, ela tinha um enorme cão amarelo preso a uma trela.

Assim que me viu, sorriu matreiramente. Inclinei-me sobre Roy para examiná-lo. Continuava magrinho, mas parecia sadio e feliz. Suas feridas estavam curadas e não havia uma só mancha em seu pelo. Quando me pus de pé, a Sra. Donovan agarrou-me pelo pulso com força, tendo um estranho brilho nos olhos.

"Então, Senhor Herriot, não acha que comigo ele ficou bem diferente ?"

"A senhora fez maravilhas", respondi. "Aposto que lhe aplicou aquele xampu mágico, não foi ?"

Ela riu e se despediu, levando o cão ao lado.

Passaram-se dois meses antes que eu voltasse a falar-lhe. Entrou em minha clínica e me agarrou novamente pelo braço.

"Senhor Herriot, que tal a diferença agora ?"

Olhei para Roy com espanto. Havia crescido e engordado. Seu pelo já não era amarelo, mas dourado, brilhando sobre as costelas bem guarnecidas de carne. Sua cauda, lindamente franjada, agitava-se ao vento. Agora era um cão autêntico. Enquanto o observava, ele se pôs de pé, colocou as patas dianteirras sobre o meu peito e me olhou firmemente. Pude ver em seus olhos a mesma afeição e tranquilidade que lhe havia notado naquele barraco escuro.

"Senhora Donovan, este é o cachorro mais bonito de Yorkshire", sussurrei e, como já soubesse que ela estava esperando por isso, acrescentei. "É aquele seu pozinho! Vamos lá, qual é a fórmula ?"

"Bem que o senhor gostaria de saber, hein !", disse ela com um jeitinho infantil e foi-se embora, feliz.

(Condensado de "All things bright and beautiful" - revista "Seleções")






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