sábado, 15 de agosto de 2015

Shoyu, sabor que excita


Com vocês, a verdadeira história do insuperável molho de soja

Quando, na manhã de 18 de junho de 1908, os 781 súditos do Império do Sol Nascente contemplaram pela primeira vez a exuberante baía de Santos, certamente imaginavam as dificuldades que enfrentariam na nova terra. Prevendo isso, transportavam nos porões do Kasato Maru - o bravo naviozinho que os conduzira através dos oceanos Pacífico e Atlântico - tudo que pudesse lembrar o Japão.

Logo após a instalação, começaram a descobrir, aqui mesmo, matérias-primas para reproduzir os objetos de sua cultura e os ingredientes da sua sofisticada culinária. Os peixes e frutos do mar para o tradicional sashimi não eram exatamente os mesmos, mas podiam ser adaptados.

O arroz brasileiro dava um saquê tão saboroso quanto o japonês. Da taquara indígena faziam-se ótimos hashi, os pauzinhos de comer.

Num ponto, porém, a saudade persistia. O shoyu, tradicional molho de soja fermentada, tempero dos temperos na gastronomia nipônica, simplesmente inexistia.

Primeiro, porque sua matéria-prima, a soja, ainda não passava de boato agrícola no Brasil. Só muito mais tarde, a partir da década de 50, a leguminosa de ouro no Oriente inundaria o país, transformando-se num dos itens mais importantes da pauta de exportações agrícolas. Além disso, o shoyu requer uma complicada preparação, o que torna difícil - não impossível - sua confecção caseira.

Viva! O tempero chega ao Brasil

Talvez seja exagero afirmar que, sem o surgimento do shoyu no Brasil, a imigração japonesa tomaria rumo diferente. A verdade é que o anúncio da fabricação do molho em escala comercial, a partir de 1915, em Santos, causou euforia na colônia - e deve ter contribuído para atrair novas levas migratórias.

Há boas justificativas para isso. A historiadora Arlinda Rocha Nogueira, na obra A Imigração Japonesa para a Lavoura Cafeeira Paulista, 1908-1922 (publicada pela Universidade de São Paulo), sustenta que uma das maiores dificuldades de adaptação à nova terra foi a falta do líquido marrom-escuro, bem salgado, de aroma agradável, que hoje é tão comum quanto a mostarda ou a pimenta-malagueta na prateleira de condimentos do supermercado.

Claro que essa é uma história recente entre nós, mas o nosso personagem tem tradição milenar no Japão, na China e em outros países do Oriente. Em tempos remotos, o elemento da comunidade encarregado de prepará-lo gozava de status de autêntico especialista e guardava com avareza os segredos de sua arte. Hoje, o shoyu é preparado industrialmente, porém continua de pé a afirmação da dra. Midori Ishii, coordenadora do curso de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP: "No Japão, comida é poesia". Com a devida licença poética, pode-se dizer que o shoyu é a rima desses saborosos versos, já que se encontra na quase totalidade dos pratos japoneses.

Com o início da produção industrial, o mágico molho oriental ultrapassou as fronteiras da colônia para frequentar, sem cerimônia, a mesa dos brasileiros. Acontece que seu uso obedece a certos critérios mal conhecidos pela maioria.

Segredos de um churrasco dourado

"Emprega-se o shoyu durante o cozimento de vegetais, carnes, ovos e peixes,dispensando-se total ou parcialmente o sal", explica Rosa Takano, especialista em culinária japonesa. O importante, adverte, é não cometer o erro de salgar um prato e só depois acrescentar o shoyu. Nesse caso, o nível de sal ultrapassará o tolerável. A observação vale também para o shoyu usado à mesa: aí, o ideal é que os pratos sejam preparados sem sal, para que cada conviva adicione shoyu a gosto.

Seja como for, o molho de soja está incorporado ao arsenal culinário brasileiro e já substitui com vantagem os tradicionais temperos de churrasco e carnes grelhadas, tão apreciados entre nós. A vantagem é que, além do sabor, o shoyu transmite um apetitoso tom dourado ao frango ou à picanha, principalmente quando se utiliza forno de microondas.

Se você quer experimentar, anote dois conselhos de Rosa Takano que vão facilitar sua vida: enquanto não adquirir prática, o melhor é provar o prato durante a preparação, para obter o equilíbrio perfeito entre o sabor e o dourado que deseja: em molhos mais sofisticados para carnes e peixes, acrescente ao shoyu uma pitada de açúcar e outra de gengibre ralado.

Com a nacionalização do molho de soja, marcas e fabricantes se multiplicaram. Hoje existem ao menos oito empresas produtoras e cerca de vinte marcas no mercado - alguns fabricantes exploram vários rótulos ou os fornecem a distribuidores com marcas próprias.

Os tipos: claro, escuro, denso

Pode-se dizer, contudo, que há poucas diferenças de sabor e aspecto entre produtos de procedências diversas, quando se fala do shoyu clássico, aquele marrom-escuro, salgadinho e levemente encorpado. Há, porém, - e pouca gente sabe disso -, mais de dois tipos: o especial, mais escuro, salgado e de gosto forte, usado especialmente para o sashimi; e seu absoluto oposto, o macrobiótico, só encontrado nos restaurantes especializados na dieta. É bem leve e - acredite se quiser - de coloração clara, porque não entra em sua composição o caramelo ou glicose queimada, que dão o tom marrom-escuro aos produtos comuns.

A diferença não é grande, pelo menos quanto a ingredientes. Em todas as receitas entram grãos de soja, sal grosso, farinha de arroz, farelo de trigo e glicose queimada ou caramelo. Alguns fabricantes, como a Sakura e a Cepera, por exemplo, acrescentam milho à receita. E a densidade do especial é maior, porque leva menos água.

O processo de fabricação do shoyu também não difere muito de uma empresa para outra.

- Primeiro, fervem-se os grãos de soja até ficarem tenros. Depois eles são moídos e transformados em pasta bem fina.

- Simultaneamente, o trigo ou o milho é tostado até ficar marrom-escuro. A seguir, é moído.

- Os dois produtos (de soja e cereal) são misturados e postos em local aquecido, onde, com a adição do fungo Aspergillus clavatus, tem início o processo de fermentação.

- Resulta uma papa que, misturada ao sal, fermentará por alguns meses - de quatro a seis, segundo Ricardo Nakaya, gerente de marketing da Sakura. Hiroshi Kimura, vice-presidente da Tozan, confirma o prazo. É possível, no entanto, que por razões econômicas o processo seja acelerado com determinadas substâncias químicas. Afinal, pelos métodos tradicionais, o tempo de fermentação chega a dezoito meses.

- Terminada a fermentação, a papa é aquecida a cerca de 90º e prensada, liberando o líquido que será a base do molho.

- Finalmente, adiciona-se água; se for o caso, também o corante e alguns aditivos químicos.

A controvérsia dos conservantes

"No shoyu produzido pela Tozan não entram conservantes", sustenta Hiroshi Kimura. A Cepera também não admite o uso de aditivos. Já nos molhos Sakura e Jimmi, o rótulo especifica (de acordo com a legislação brasileira) os seguintes elementos:

Conservante PI - Trata-se do ácido benzoico, inibidor do crescimento de fungos, leveduras e bactérias. Não provoca danos à saúde, desde que usado dentro dos limites estabelecidos por lei (0,035% do total).

"Mas o excesso dessa substância no organismo pode inibir o crescimento da flora intestinal, formada por bactérias importantes no processo digestivo", adverte o professor Renato Baruffaldi, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. A consequência mais comum do desequilíbrio da flora é a diarreia crônica. Claro que se você ingerir o PI contido no shoyu não correrá esse risco; no entanto, se consumir muitos alimentos industrializados, sofrerá o efeito cumulativo do conservante.

Corante CIII - É adicionado ao caramelo (corante natural) e tem uso liberado pela legislação. Se não for preparado adequadamente, pode reduzir linfócitos e leucócitos, células fundamentais para o bom funcionamento do sistema imunológico.

Glutamato Monossódico - Conhecido comercialmente como aji-no-moto, serve para potenciar o sabor dos alimentos; seu papel é aumentar a sensibilidade das papilas gustativas. Atua, portanto, sobre a língua e a mucosa bucal, e não sobre o alimento. Em pessoas sensíveis, provoca mal-estar e dor de cabeça.

Quanto ao Aspergillus, o fungo que serve como agente fermentador no processo de fabricação do shoyu, não é conservante nem libera toxinas danosas ao organismo. "Como a fermentação precisa ser interrompida num determinado momento, para que o produto se estabilize e se conserve na prateleira, usa-se o conservante já mencionado (PI) para brecar a ação do fungo", explica Iara Carnevalli, nutricionista do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Exatamente por causa do controle de fermentação, a fabricação caseira do molho de soja é difícil.

Mesmo assim, a família Oshima, de Lucélia, interior de São Paulo, produz o shoyu dentro dos cânones tradicionais, com dezoito meses de fermentação e sem qualquer aditivo químico. A raridade, que você precisa conservar na geladeira, é encontrada em dois entrepostos naturalistas de São Paulo.

Poucos nutrientes, mas muito prazer

Se você procura no shoyu uma fonte de vitaminas, proteínas, sais minerais, esqueça. "Apesar de  ter soja como ingrediente, o shoyu é apenas um condimento", observa a dra. Midori Ishii.

Aliás, sua composição deixa isso bem claro: 68% de água; 18 a 20% de sal; 6% de proteínas; 5% de carboidratos; 1% de gordura.

Um condimento rico em sal, já dissemos. Portanto, cuidado: "Importar hábitos alimentares sem critério e, ainda por cima, juntá-los às práticas já estabelecidas pode custar caro à saúde", adverte a homeopata paulista Yoshie Takano. "É comum a pessoa despejar sobre um prato de arroz, feijão, batata frita, bife à milanesa e salada - devidamente temperados - uma quantidade excessiva do shoyu. Nesse caso, certamente haverá exagero no sal."

O mais universal dos temperos não é tão inocente quanto parece. "O sal - ou melhor, o sódio nele contido - é o principal regulador do volume total de líquidos que circulam no corpo", explica o dr. Rubens A. Sallum, gastroenterologista do Hospital das Clínicas, de São Paulo.

Trocando em miúdos, a concentração de sal é um dos fatores que determinam o volume de sangue (bem como de outros fluídos) no organismo. Quando se eleva, aumenta o sangue circulante e, consequentemente, a pressão com que transita pelas artérias. É a hipertensão. Mais do que isso, podem surgir edemas e inchaços resultantes do esforço do organismo para livrar-se do excesso de água e sal. Os edemas, em geral, ocorrem nas pernas e pés, atingindo às vezes os pulmões, onde originam complicações graves.

Para se defender do excesso de sal, o corpo o elimina através do suor e urina; mas, dependendo da quantidade (ou de características individuais), permanece um resíduo prejudicial. Por isso, o melhor mesmo é usar o sal (no nosso caso, o shoyu) com parcimônia.

Para você fazer uma ideia, uma colher de chá de shoyu contém cerca de 750 mg de sódio, mais do que a necessidade mínima diária do corpo humano, como registra o dr. Flávio Rotman em seu livro A Cura Popular pela Comida (Ed. Record). O consumo excessivo de sódio - através do sal e conservantes que contêm esse elemento - é um hábito arraigado no mundo dito civilizado, alerta o médico. De acordo com ele, ingerimos de dez a trinta vezes mais sódio do que necessitamos.

Quem deve evitar o tempero

Vá devagar com ele, portanto, especialmente se o seu organismo tem alguma dificuldade em processar o sal. Incluem-se aqui os seguintes distúrbios:

- Cirrose hepática: o trabalho extra com o metabolismo do sal sobrecarrega o fígado.

- Doença renal: os rins são os grandes responsáveis pela eliminação do sal através da urina. Se não funcionam a contento, provocarão acúmulo de sódio, com todas as consequências já mencionadas.

- Finalmente, o sal é desaconselhável a portadores de hipertensão, pois agrava o distúrbio.

Com todos esses cuidados, você poderá desfrutar o tempero excitante que é o shoyu, sem se preocupar com eventuais prejuízos à saúde. Afinal, como ficou claro, o delicioso molho que veio do Oriente é apenas um condimento. Como tal, deve ser usado para realçar sabores e não atiçar efeitos colaterais indesejados.



(texto publicado na revista Saúde nº 54 - março de 1988)

































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