sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A Escola de Milão e a formação de professores de alunos com Deficiência Intelectual - Anna Debè


Instituição fundada pelo padre Agostino Gemelli conciliava medicina, psicologia e pedagogia, antes da inclusão escolar na Itália

RESUMO: Este artigo reconstrói a história da "Escola de auxiliares especiais e assistentes para crianças com deficiência" inaugurada em 1926 na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão pelo padre Agostinho Gemelli, fundador e primeiro reitor. A evolução da Escola, uma das primeiras desse tipo na Itália, permite investigar mudanças ocorridas na formação de professores "especiais" no século passado, ligadas no processo gradual de inclusão de crianças com deficiência em classes comuns. Consequentemente, essa experiência representa parte do caminho italiano da inclusão escolar de deficiência reflete a atenção do mundo católico contemporâneo na educação de pessoas mais vulneráveis, com base em estudos científicos. Os professores "especiais" da Escola de Gemelli tinham de adquirir competências médicas, psicológicas e pedagógicas. Este artigo contribui no campo da história da educação especial, que só recentemente tem atraído o interesse de estudiosos italianos, e foi realizado por meio de investigações de fontes primárias (5 arquivos, 350 cartas, 300 mil dados coletados), com o objetivo de realçar a ação de professores, usuários, além de materiais e livros didáticos da Escola, desde sua origem até os anos 1970.

Na Itália, as iniciativas educacionais para pessoas com deficiência começaram a tomar forma no início do século XX, com a criação de escolas especiais para pessoas com déficits cognitivos e, a partir daí, na formação de professores "especiais". Este artigo analisa a experiência da "Escola de auxiliares especiais e assistentes para crianças com deficiência", inaugurada em 1926 na Universidade Católica de Milão pelo psicólogo e padre Agostinho Gemelli. Essa foi uma das primeiras escolas italianas configuradas para a formação de professores de crianças com deficiência; na verdade, foi a terceira, depois de Roma e Florença.

A importância da Escola de Milão se deve a duas razões. A primeira é que representa o caminho italiano para a inclusão escolar de pessoas com necessidades especiais, mostrando como a formação de professores mudou a partir dos anos 1920 até a década de 1970, seguindo diferentes formas de olhar as crianças com deficiência, desde o isolamento em escolas especiais à inclusão em classes comuns. A segunda razão é que a Escola evidencia o trabalho do padre Agostino Gemelli na educação especial e realça seu papel no cenário científico italiano. Seu trabalho conciliou medicina e psicologia experimental com educação e valores religiosos a iniciativas científicas.

Padre Agostino Gemelli

Padre Gemelli foi um dos psicólogos italianos mais famosos no século XX. Seu interesse pela deficiência reflete como o mundo católico se preocupava com intervenções para os mais vulneráveis, dirigidas não somente pelo sentimento de caridade, mas também por estudos científicos. Com efeito, durante sua vida, padre Gemelli sempre tentou vincular a abordagem científica à sua orientação religiosa.

Padre Gemelli nasceu em uma família agnóstica de classe alta em Milão em 1878. Chamava-se Edoardo Gemelli e se formou em medicina em 1902 com Camillo Golgi, que ganhou o Prêmio Nobel em 1906 por seu trabalho sobre a estrutura do sistema nervoso. Gemelli, que foi membro do Partido Socialista Italiano durante sua juventude, fez sua conversão religiosa e ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1908, quando recebeu o nome de Agostino. Como membro dessa ordem religiosa, ele não poderia exercer a medicina e, por isso, se aproximou do campo da psicologia experimental. 

O Instituto de Psicologia que Gemelli criou foi uma das instituições mais proeminentes de seu tipo na Itália e na Europa. O instituto promoveu, mesmo depois da morte de seu fundador, pesquisas avançadas nas áreas de percepção, seleção de pessoal, orientação profissional, psicologia do desenvolvimento e comparativa, estudos sociais e do desenvolvimento do caráter. Com o apoio de especialistas de outros países, o instituto organizava seminários avançados e discussões entre Gemelli e seus colaboradores, que se tornariam expoentes da psicologia italiana nos anos seguintes. Gemelli fundou a Universidade Católica de Milão, em 1921, e foi seu reitor até sua morte, em julho de 1959.

O trabalho de Gemelli na área de formação de professores de crianças com deficiência estava relacionado à psicologia aplicada à educação: no Instituto de Psicologia ele promoveu estudos médicos e psicológicos relevantes, contribuindo para facilitar a instrução de crianças com deficiência. Gemelli considerava que a psicologia deveria se inspirar na biologia e promoveu pesquisas psicológicas baseadas em processos empíricos e mensuráveis, que consistiam na observação, medição, experiência, formulação e teste de hipóteses.

De acordo com essa abordagem, pode parecer que a psicologia foi completamente subordinada à biologia. Em vez disso, Gemelli estava convencido de que a psicologia devia ser reconhecida como uma disciplina científica independente. No entanto, segundo ele, estudiosos das ciências humanas precisavam adotar paradigmas e métodos científicos. Por essa razão, o laboratório de biologia da Universidade Católica de Milão foi unido ao Instituto de Psicologia, com o objetivo de apoiar os estudantes na Faculdade de Filosofia que se aproximavam da psicologia sem ter conhecimento sobre a estrutura do sistema nervoso ou das funções cerebrais. A forma de Gemelli olhar a psicologia decorria de sua concepção do ser humano como uma "pessoa", que é uma totalidade biológica e mental integrada e deve ser considerada na sua unidade. Essa concepção do ser humano como síntese de múltiplas dimensões levou Gemelli a aplicar a psicologia em diferentes aspectos da vida humana, como educação, sociedade, justiça e trabalho.

Além de fundar a "Escola de auxiliares especiais e assistentes para crianças com deficiência", o trabalho de Gemelli estava ligado a duas iniciativas concretas. Em primeiro lugar, ele entrou para a Società Italiana Pro Anormali (SIPA), a associação italiana para proteção de crianças com deficiência. Gemelli contribuiu para definir o Estatuto da sociedade, focando a atenção na promoção de estudos no campo de medicina, psicologia aplicada e pedagogia especial, e promoveu a organização de cursos de  formação para médicos, professores e famílias de crianças com deficiência. Em segundo lugar, o frade franciscano fundou um ambulatório e um laboratório no Instituto San Vincenzo de Milão para os alunos da Escola visitarem e analisarem crianças com Deficiência Intelectual. O Instituto foi uma das primeiras instituições italianas desse tipo e foi caracterizado pela cooperação entre medicina, que investigava a etiologia e a classificação de déficit intelectual, e pedagogia, que oferecia insights úteis na reflexão teórica, a partir da experiência prática. O ambulatório e laboratório San Vincenzo era importante para o Instituto, porque tinham a responsabilidade de decidir sobre admitir ou não os alunos na Escola de professores. As informações coletadas durante os exames dos alunos aspirantes do ambulatório eram coordenadas no laboratório. O trabalho e as pesquisas do Padre Gemelli e seus colaboradores no Instituto centravam-se em estudos etiológicos em deficiência, procurando ao mesmo tempo novas formas de classificações.

A estrutura da investigação

A pesquisa que fundamentou este artigo foi realizada por meio da análise de documentos históricos - 5 arquivos e 350 cartas, com 300 mil dados coletados -, com o propósito de examinar a atuação de professores, usuários, funcionários, materiais e livros didáticos da Escola desde sua origem até os anos 1970, quando se deu a inclusão escolar na Itália.

A dificuldade da investigação residiu especialmente no período do estudo, em lacunas documentais e na falta de material publicado sobre a Escola. Mesmo assim, esta pesquisa reflete transformações relevantes do ponto de vista educacional.

Os professores

Padre Gemelli recrutava professores de grande notoriedade na Itália e no exterior para ensinar na Escola, sem se importar com suas tendências ideológicas. A maioria dos professores tinha formação em medicina e psicologia. Um deles, o psiquiatra e psicólogo Sante De Sanctis, tinha aberto em Roma, em 1899, a primeira escola especial italiana, que se tornou uma referência por não ser apenas um lugar de cuidados médicos par crianças com deficiência, mas principalmente por representar uma possibilidade de educação de sua mente e caráter.

O neuropsiquiatra Eugenio Medea, outro professor da Escola, tinha criado em 1915 a primeira escola especial em Milão financiada pela administração pública, nomeada em homenagem a Zaccaria Treves, médico de intensa atuação em educação e cuidados de crianças com Deficiência Intelectual.

Alfredo Albertini, médico que dirigiu a escola especial Zaccaria Treves, tinha ampla experiência na área das deficiências e também foi professor da Escola de Milão. O fisiologista Casimiro Doniselli ensinou na Escola de Gemelli depois de ter dirigido o Laboratório de psicologia pura e aplicada de Milão, cujo objetivo era estudar a deficiência dos alunos. Outros professores da Escola foram: Giuseppe Corberi, médico e psicólogo; Ludovico Necchi, colaborador de Gemelli na Universidade Católica; e Don Angelo Restelli, sacerdote e diretor do Instituto San Vincenzo.

Os alunos tinham não só de estudar manuais e assistir às palestras em sala de aula, mas também comparecer às aulas de seus professores em outros locais, como hospitais, clínicas e asilos, com o objetivo de unir a teoria à prática. Com o mesmo propósito, os professores tinham de fazer um estágio em uma escola especial por pelo menos duas semanas.

Os cursos

Definidos pelo estatuto da Escola, os cursos tratavam de pedagogia e educação especial, legislação escolar, anatomia e fisiologia, higiene escolar, psiquiatria infantil, psicologia experimental, psicologia infantil, psicologia aplicada e fonologia. O foco da Escola era medicina e psicologia: a pedagogia começou a aparecer mais intensamente apenas na década de 1960. Antes disso, apenas nos anos letivos de 1936/1937 e 1937/1938, Mario Casotti, filósofo e professor de pedagogia na Universidade Católica de Milão desde 1924, deu palestras para os alunos sobre pedagogia e educação especial.

Essa situação reflete a abordagem comum na área de deficiência durante o século XX na Itália e, em geral, na Europa: a prioridade deveria ser medicina e psicologia, necessárias para intervir de modo amplo e de uma forma educativa. Considerava-se essencial, em primeiro lugar, aprender sobre a origem e classificação de deficiência, o funcionamento da mente e as doenças do corpo. Consequentemente, os professores "especiais" deviam ser capazes de reunir habilidades médicas, psicológicas e pedagógicas. Ter um bom conhecimento do funcionamento mental e físico do corpo humano era considerado essencial para educar de forma eficiente as pessoas com deficiência.

As personalidades mais influentes da época que trabalhavam no campo da educação especial eram médicos. Por exemplo, Maria Montessori se graduou em medicina em 1896 e dedicou seus primeiros anos de trabalho em aplicar suas competências e conhecimentos e educação de crianças com deficiência.

Os alunos da Escola de Gemelli, por falta de preparo adequado, tinham dificuldade para estudar assuntos científicos. Eles vinham de uma escola especializada na formação de professores de escola primária, com disciplinas relacionadas à pedagogia e didática. Em consequência, a taxa de reprovação era muito elevada.

Os resultados dos exames também documentam as dificuldades dos alunos. Os alunos podiam se formar com uma pontuação máxima de 90, mas as notas finais eram geralmente mais baixas, com uma média entre 61/90 e 80/90. Os alunos encontravam muitas dificuldades para estudar disciplinas como medicina e psicologia e os professores eram muito exigentes.

Os alunos

Não é possível ter a informação completa dos alunos ano a ano até a década de 1950. Geralmente, os estudantes eram majoritariamente mulheres e todos tinham de ter certificação de professor primário. As aulas  duravam seis meses, eram  ministradas nas manhãs de domingo e quintas-feiras à tarde, e os alunos podiam optar por adicionar um segundo ano de especialização.

Os arquivos dão a possibilidade de obter informações bastante detalhadas sobre os estudantes de 1958 a 1978.  O número maior de estudantes ocorreu entre 1964/1965 e 1971/1972, já que nesses anos, na Itália, houve um grande aumento do número de escolas especiais e classes especiais para crianças com deficiência e, em consequência, a necessidade de professores qualificados também aumentou. Em contraste, houve uma redução de 51% no número de estudantes entre 1971/1972 e 1972/1973. Essa queda refletiu a situação escolar dessa fase: a legislação italiana começou a organizar, nessa época, o processo de inclusão de crianças com deficiência nas classes regulares.

Como nas décadas anteriores, nos anos 1960 e 1970 a maior parte dos estudantes eram mulheres. Deve-se lembrar que a possibilidade de admissão era reservada a pessoas qualificadas para ensinar em escolas primárias, que em geral eram mulheres. Embora não seja possível reconstruir os dados, é perceptível que uma grande proporção dos poucos homens matriculados na Escola era representada por sacerdotes, refletindo a atenção à deficiência desse grupo.

Nos anos 1960 e 1970, os alunos podiam escolher, no segundo ano, uma especialização em um tipo de deficiência: intelectual, auditiva, visual, e física. A maior parte dos estudantes escolheu se especializar em Deficiência Intelectual. Dessa forma, a Escola deu atenção às orientações do ministério, que naqueles anos identificou diferentes tipos de classes e escolas especiais, dependendo de deficiência dos alunos.

Conclusão

A Escola de Milão representa uma iniciativa religiosa com sólida base científica. Os resultados reforçam a formação específica para futuros professores de educação especial, que tinham de colaborar com médicos e psicólogos e ter competências nas áreas médica, psicológica e pedagógica. Essa atenção à formação de professores reflete a forma como o mundo acadêmico e a sociedade da época se preocuparam em investir na educação de crianças com Deficiência Intelectual, física ou sensorial. Durante os últimos séculos, houve uma mudança no foco das pessoas consideradas com deficiência, de uma condição de isolamento para um atenção específica às suas necessidades educativas, a partir de iniciativas concretas, como a formação de professores "especiais".

Além disso, a Escola de Milão, fundada pelo padre Agostino Gemelli, reflete o caminho italiano para o estabelecimento da figura do professor de alunos com necessidade educativas especiais (NEE), introduzida em 1975. Na década de 1970, durante o processo de inclusão escolar, a situação italiana mudou: os professores das escolas regulares não estavam preparados para educar alunos com deficiência em salas de aula inclusivas. Esta pesquisa permite entender melhor a formação atual dos auxiliares de professores de educação especial por meio de uma perspectiva histórica, enfocando as conexões entre inclusão e formação de professores, medicina, psicologia e educação.




(texto publicado na revista DI Deficiência Intelectual nº 8 - ano 5 - janeiro/junho de 2015)

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