quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Pincel & Bisturi - Suzel Tunes


O pintor paulista José Falcetti une talento e conhecimento científico para retratar cirurgias e órgãos do corpo humano

O pintor Di Cavalcanti gostava de retratar mulatas. Alfredo Volpi ficou conhecido pelas bandeirolas e outros motivos geométricos. Aldemir Martins, por sua preferência por gatos, peixes e flores. Cada artista tem uma marca, uma preferência temática que o caracteriza. Com o pintor paulista José Falcetti não é diferente - só que os seus temas não são  tão poéticos: ele é um especialista em ossos, músculos, artérias, tendões. Outra diferença: ninguém encontrará seus retratos do corpo humano e suas cenas de cirurgia em uma galeria de arte. A obra de Falcetti é feita sob encomenda para as páginas de livros e apostilas de medicina: ele é um ilustrador de anatomia. E, dentro de sua especialidade, não fica nada atrás de Di, Volpi ou Aldemir.

O traço desse pintor, paulista de Araçatuba, hoje é tão conhecido e respeitado pelos médicos quanto o de um grande mestre. Agora, por exemplo, um de seus trabalhados mais recentes está sendo distribuído pelo mundo inteiro: trata-se do Atlas of Vascular Anatomy, Atlas da Anatomia Vascular, escrito por Rena Uflacker, médico gaúcho que dá aulas de cardiologia na Universidade da Carolina do Sul, Estados Unidos. É uma obra inédita, que traz com ilustrações dos vasos e artérias do corpo humano, feitas com aquarela e aerógrafo. Demorou dois anos e quatro meses para ficar pronta. A mesa de Falcetti continua com uma pilha de novos trabalhos, prontos para serem encaminhados para a gráfica. E as encomendas não cessam.

O médico Liberato Di Dio, um dos mais conceituados anatomistas do mundo, integrante do comitê que padronizou mundialmente a nomenclatura dos órgãos do corpo humano já inclui seu pedido: "Estou escrevendo um Tratado de Anatomia Aplicada e vou pedir ao Falcetti que faça as ilustrações", anunciou.

Ao vivo, sangue e gordura poluem a imagem

Outros médicos famosos, como o cardiologista e ex-ministro Adib Jatene e o gastroenterologista Silvano Raia, também já tiveram trabalhos ilustrados por José Falcetti. "Às vezes não dá para atender todo mundo", lamenta o pintor, que só tem um assistente, o sobrinho Argemiro Falcetti. Mas nem por isso os pedidos cessam, mesmo porque não há a quem recorrer, pois ele não tem nenhum concorrente em toda a América do Sul. "Conheço um ilustrador de anatomia na Suíça, outro na Itália, um ou dois na Alemanha e uma meia dúzia nos Estados Unidos", enumera Falcetti. "Mas é só."

Em 57 anos de trabalho como anatomista, Liberato Di Dio também pode contar nos dedos os artistas que já ilustraram livros seus: não chegam a dez. Atualmente, só conhece Falcetti. Esse tipo de profissional é cada vez mais raro, mas ainda indispensável para o ensino de medicina. Di Dio, que dá aulas de anatomia na Universidade de Santo Amaro, em São Paulo, explica que a foto, vídeo, ou mesmo a dissecação ao vivo não substituem o detalhamento didático de uma ilustração. "O sangue e a gordura poluem a imagem e dificultam o reconhecimento das estruturas quando se trata da foto ou vídeo", explica. "Já o desenho é mais limpo e claro."

Di Dio reconhece que, hoje, pode recorrer às imagens tridimensionais de um CD-ROM para ilustrar uma aula, mas se recusa a usar esse expediente na publicação de um livro. "Quando você quer uma obra de arte precisa convidar um artista", sentencia. E esse talvez seja o segredo do sucesso do ilustrador entre os médicos: os desenhos de Falcetti são, antes de tudo, bonitos. Desde criança, o artista revelava seu pendor para as artes. Adolescente, passava horas, admirando a restauração dos afrescos da igreja de Araçatuba, feita por um casal de artistas da cidade. "Depois de um tempo, o pintor, que era dono de uma escola de arte, deve ter cansado de me ver por ali e me ofereceu uma vaga na escola. Eu pagava meu curso dando aulas para seus alunos principiantes", conta ele.

Emprego público e decoração nos vidros do hospital

Com o tempo, Falcetti foi aperfeiçoando seu dom em outras escolas. Fez cursos rápidos de publicidade e arquitetura, por exemplo, antes de entrar na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Mas não foi seu desempenho como aluno que lhe valeu o cargo de Diretor de Artes Médicas que ocupa hoje no Hospital das Clínicas de São Paulo. "Há 22 anos, eu entrei no HC como escriturário, mediante concurso público, para trabalhar na contabilidade. Mas, quando chegava a época das festas de final de ano, fazia a decoração do hospital, pintando motivos natalinos nos vidros. O dr. Raul Marino Jr., neurocirurgião do hospital, viu, gostou dos meus desenhos e me convidou para fazer ilustrações de seus trabalhos." Daí em diante, ele não fez outra coisa.

Apesar de não ter cursado nenhuma faculdade de medicina, o ex-escriturário logo conseguiu um tal grau de exatidão na reprodução das estruturas, que surpreendeu os próprios médicos. Na ilustração científica, o artista não tem liberdade para criar, e Falcetti leva esse preceito à risca. "Não posso cometer erros. Desenho as etapas de uma cirurgia que servirão de referência para o médico operar", explica ele. "Assim, o artista contenta-se em criar apenas quando escolhe o jeito de mostrar o órgão, o ângulo ou a perspectiva pelo qual se pode mostrar melhor um osso.

Falcetti conta que, em alguns países como Estados Unidos, França ou Alemanha, os cursos de medicina possuem, como cadeira curricular, uma especialidade denominada "artes médicas". O aluno estuda os anos básicos de medicina e depois, se quiser, segue fazendo especialização na área artística. No Brasil, isso não existe. Por isso, Falcetti desenvolveu seus conhecimentos em anos de estudo e dedicação como autodidata. "Assistia a cirurgias praticamente todos os dias, até fazia dissecação, sempre que possível", lembra ele.

Martelo e talhadeira na mesa de cirurgia

Às vezes, a tarefa era árdua. "Algumas cirurgias, especialmente as ortopédicas, assemelhavam-se mais a espetáculos de truculência para um espectador desprevenido, pois os cirurgiões precisam usar ferramentas grosseiras como talhadeiras e furadeiras. Não é nada bonito de se ver", admite. Atualmente, Falcetti nem precisa mais recorrer às dissecações e cirurgias para executar o desenho encomendado. Ele é capaz de fazê-lo usando apenas as informações armazenadas na memória durante esses 22 anos de trabalho. "Quando um médico pede que eu faça um passo-a-passo de um procedimento cirúrgico qualquer, ele apenas me conta como deverá ser a operação e eu desenho de memória. Já tenho mentalizada toda a estrutura do corpo humano", orgulha-se o ilustrador. Às vezes, ele também recorre a  radiografias e tomografias, como na execução do atlas de anatomia vascular publicado recentemente. Mas ressalta: faz um esboço primeiro a lápis e pede depois para o médico conferir. "Afinal, eu não sou médico."

Os erros do mestre da pintura

No Brasil, a ilustração médica é uma atividade não reconhecida profissionalmente. E, no entanto, a história registra grandes nomes na galeria dos artistas voltados para a ciência. O maior deles, sem dúvida, foi Leonardo Da Vinci, que nasceu em 1452 na cidade de Vinci, perto de Florença, na Itália, e morreu em 1519 em Amboise, França. Uma de suas especialidades era a anatomia humana, que estudava - e desenhava - tanto para obter maior perfeição em suas pinturas e esculturas, como por interesse puramente científico. Em sua vida, porém, ciência e arte não se dissociavam. Além de artista, esse gênio curioso e irrequieto também foi arquiteto, matemático, engenheiro, biólogo, músico,  e até diretor teatral.

Para fazer seus desenhos de anatomia, Da Vinci visitava hospitais e assistia às toscas cirurgias possíveis em sua época. Algumas vezes, ele próprio fazia dissecação de cadáveres. E corria risco de vida por causa disso, pois a Igreja Católica condenava a dissecação como um sacrilégio, ou seja, uma profanação do corpo humano. Tal ato podia resultar em prisão, morte ou excomunhão.

Mesmo assim, Leonardo, até o fim da vida, realizou cerca de 30 dissecações. Ele, assim como outros anatomistas, valia-se de artifícios mirabolantes, como salas secretas e planos de fuga para exercer sua arriscada profissão. Segundo o anatomista Liberato Di Dio, professor da Universidade de Santo Amaro, em São Paulo, é provável que a própria palavra cadáver tenha surgido a partir de uma sigla secreta inventada por esses infratores. "Segundo alguns estudiosos, a palavra foi formada pela primeira sílaba de cada palavra da expressão latina caro data vermibus, ou seja, carne dada aos vermes. Esta senha teria sido usada por anatomistas e coveiros, para despistar os inspetores e policiais", explica o anatomista.

Segundo Di Dio, Leonardo foi o autor de desenhos de surpreendente perfeição e chegou até a descobrir algumas estruturas anatômicas desconhecidas. Foi, por exemplo, um dos primeiros anatomistas a desenhar um feto dentro do útero. Contudo, até o mestre cometeu alguns erros. "A posição do feto está perfeita, mas ele desenhou uma placenta cotiledonária, ous eja, formada por estruturas chamadas de cotilédones, que são encontradas na placenta da vaca, e não na da mulher", diz ele. Em outros desenhos, também cometeu deslizes na representação da forma e localização de alguns órgãos. Para Liberato Di Dio, é fácil explicar por quê. "Na época em que Da Vinci fazia dissecações, não havia formol, substância usada na conservação do corpo humano. Assim, em 24 horas, o cadáver apodrecia e as estruturas se modificavam. No desenho do útero, por exemplo, provavelmente ele reproduziu a parte principal e depois foi buscar detalhes em um animal que ele julgava não ser muito diferente do homem e que estava mais disponível para estudo", supõe.

Mas os erros cometidos pelo mestre não ofuscam o pioneirismo e o brilho de seu trabalho. Além de desenhar, Leonardo Da Vinci também descrevia minuciosamente as estruturas estudadas. Só que esses estudos ficaram indecifráveis por muito tempo, pois o gênio escrevia de forma muito peculiar: de trás para diante, e com as letras invertidas, de modo que o texto só pudesse ser lido diante de um espelho. "Talvez ele quisesse manter os trabalhos em segredo ou estivesse apenas propondo um desafio intelectual aos seus contemporâneos", conjectura Di Dio. "Mas, se tivessem sido revelados e aceitos na época, certamente a medicina teria avançado cem anos, no mínimo."



(texto publicado na revista Globo Ciência nº 80 - ano 7)

Nenhum comentário:

Postar um comentário